11.12.19

COMO VEIAS FINAS NA TERRA: dualidade e contraposição nas paisagens e na representação do feminino

Trabalho apresentado para disciplina Literaturas Africanas de Língua Portuguesa I, da Letras, para a Professora Doutora Tania Celestino de Macêdo, em 2019.

Thayna Rodrigues Silva
Yuna Ribeiro Conceição



“Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim.”
TAVARES, 2011, p. 234

A poesia de COMO VEIAS FINAS NA TERRA fala de tensões opostas que convivem na realidade de Angola, em confronto e emaranhado os fios do verso puxam significados da tradição e rasgam espaço para o novo, numa prosa poética Paula Tavares conversa intimamente com a mulher angolana, da lama, da pedra, do ritual, ao florescer da buganvília e do jacarandá. Carmen Lucia Tindó Secco, no posfácio de AMARGOS COMO OS FRUTOS, poesia reunida, comenta sobre essa tensão:
É uma poesia que carrega dentro de si contradições inúmeras, complexidades enormes, fazendo interagirem, em tensão, os sentidos telúricos e o espólio advindo de culturas que, através dos séculos, habitaram Angola; tradição e modernidade; a aridez de dunas junto às fronteiras com a Namíbia e a liquidez de rios e lagos angolanos; provérbios locais e legados culturais trazidos pela colonização portuguesa; mitos e cantos coletivos mumuílas, originários da região da Huíla, no sudoeste angolano, e heranças de epopeias homéricas – tudo isso contracena com o olhar e os afetos  do sujeito lírico, com sua solidão de poeta. (SECCO, 2011, p. 263)
Franz Fanon, no livro OS CONDENADOS DA TERRA, elucida a violência da colonização e do colonizador, em dado trecho fala sobre os sonhos do colonizado:
A primeira coisa que o indígena aprende é a ficar no seu lugar, não ultrapassar limites. Por isso é que os sonhos do indígena são sonhos musculares, sonhos de ação, sonhos agressivos. Eu sonho que dou um salto, que nado, que corro, que subo. Sonho que estou na gargalhada, que transponho o rio com uma pernada, que sou perseguido por bandos de veículos que não me pegam nunca. Durante a colonização, o colonizado não cessa de se libertar entre nove horas da noite e seis horas da manhã”. (FANON, 1968, p. 39)
O excerto, que por sua beleza e força expressa uma potência poética, pode ser aproximado da intenção encontrada no lirismo de Paula Tavares. O processo de descolonização não encerrou o sofrimento e a exploração dos homens, a violência da escravidão e do trabalho compulsório, que na Angola vigorou até 1961, reverbera marcas profundas até os dias de hoje, para as mulheres, que sofrem dupla subjugação, a busca pela liberdade material e subjetiva precisa ainda mais do impulso dos sonhos. Na poesia da autora movimentam-se sonhos agressivos de sofrimentos e prazeres, seu fazer poético e suas imagens possuem o fluxo e o alcance do universo onírico, sem os limites da realidade são ressignificadas as paisagens terrenas e os corpos lançam-se geograficamente redesenhando suas memórias e sua história.

Neste trabalho a análise está concentrada nos poemas iniciais, ENTRE LUZ E SOMBRA e OS NOVOS CADERNOS DE FABRO, representativos dos elementos presentes em todo o livro, com destaque para a contraposição marcada entre luz e sombra, o novo e a tradição, em escrita livre e de tom confessional, a atualidade latente de seus versos revelam a crueldade e a delicadeza da representação feminina na literatura angolana.

ENTRE LUZ E SOMBRA

Este poema pode ser analisado como um ritual de passagem. Na primeira estrofe, há a  principal imagem que se repete pelo poema, a da sombra que desliza por detrás dos vimes, esta imagem antecipa o conteúdo do poema, a ideia da luz e da sombra como coisas indissociáveis, a noção de um poema fluido, cheio de gradações, em que é possível sentir a sensação de algo que está em suspensão, por isso, o emprego do verbo deslizar indica e acentua esse sentimento de fluidez.

Os versos: “celebra-se a hora/ Os mortos abandonam os vivos/ para viver em paz”. Denotam este ritual de passagem. É chegada a hora em que os mortos deixam os vivos para viverem em paz, este momento requer cuidados, preparação, por isto, são convocadas as mães para realizarem os rituais necessários: “Acendo com as mãos das mães / a candeia antiga de óleo de palma”. As matriarcas cumprem um papel importantíssimo neste ritual, elas têm a função de provar a comida e velar as oferendas, como nos versos: “Enquanto as mulheres dos clãs de cima / provam a comida da noite / e velam pelo fogo das oferendas.” Essa imagem do ‘velar pelo fogo das oferendas’ pode ser vista como redundante, pois o verbo ‘velar’ pode ter o significado de permanecer aceso. Indicando assim, quão importante foi a descoberta do fogo para a sociedade, que fez ser possível alimentar-se. Velar o fogo das oferendas então é valorizar a possibilidade de utilizar dos recursos da natureza para suprir suas necessidades físicas e fazer uso disto para louvar a vida, sendo que o próprio uso da palavra oferenda indica este sentido ritualístico. Sobre a importância da figura das mulheres na obra de Ana Paula Tavares, escreve Chaves:
Conforme o poema, as palavras são como a vida das mulheres, interligadas, mesmo geograficamente dispersas. Na poesia de Paula, diluem-se os mitos vazios de um feminismo retórico ou de um tradicionalismo exotizante para dar lugar à visão de um grupo que intervém na sociedade em que está inserido. Dessa maneira, Ana Paula não fala pelas mulheres de sua terra ou de outras, fala com elas, abre-lhes o lugar que elas já ocupam. É essa uma das maneiras de denunciar uma das muitas injustiças dos tempos que não param de correr. (CHAVES, 2005, p.112)

O poema é circundado o tempo todo pelas imagens de sombra e de luz, que refletem a principal noção transmitida pelo eu lírico, que é a da vida e da morte. Se há luz, existirá a sombra, pois como em seu outro poema desta mesma obra: “Como a folha se vira para a luz / a sombra desenha-se na parede.” (2011, p. 225), demonstra a impossibilidade de separar a luz da sombra, também nesse sentido, é possível dizer que não há vida sem morte. Esses conceitos são indissociáveis e entender isto é entender a necessidade de celebrar o momento da partida. Por exemplo, as imagens da noite, da madrugada, da sombra que desliza apontam para o sentido da sombra, da morte que se aproximou, em contraponto com as imagens dos ovos de vida da serpente, da fonte guardada pelos guardiães, do próprio fogo, que indicam o sentido da luz, e consequentemente da vida. Os ovos são vida, pois novas vidas habitam esses ovos, sendo assim indica iniciação.

É significativa também a questão do cuidado e da proteção, a cobra dorme sobre seus ovos, e os protegem, os guardiães da fonte preparam a madrugada, indicando cuidado, as mães velam o fogo: velar com o significado de permanecer em vigília para proteger algo. Tudo isto abre margem para entender o quanto é importante este ritual de passagem, pois todo ele deve ser feito com muito zelo e cuidado.

Sobre a sonoridade, há forte emprego da consoante bilabial ‘m’, que traz a sensação de graduação, processo, arredondamento, tudo isto acentua a ideia de que este procedimento ritualístico é algo que está se passando em um tempo suspenso, um tempo diferente do tempo cotidiano, é um momento especial.

Nesta obra de Paula Tavares, a autora utiliza em diversos momentos os elementos do ofício de escrever para compor seus poemas, as palavras, os versos, são recorrentes imagens utilizadas por ela para mostrar a subjetividade perante a vida. Neste poema em específico: “Uma antiga fúria oferece / a formula / limpa as palavras / de todas as sílabas mortas.” Estes versos abrem margem para o entendimento da renovação, as sílabas mortas são a metáfora do que é preciso deixar para trás neste ritual, ficam as palavras já limpas, as palavras vivas, a vida então continua, a vida então segue.
E então é posta a questão do silêncio das mães, como prenúncio do luto, que é este nó da voz que fica, mas que é capaz de atravessar a vida assim mesmo e sustentar metade da terra:
O nó da voz atravessou a vida
Sustenta a metade da terra
Onde deslizam as sombras
Por detrás dos vimes
Celebra-se então a hora
Os mortos abandonam os vivos
Entre sombra e luz
Nas veias finas da terra.
(TAVARES, 2011, p. 216)
Quando os mortos abandonam os vivos é preciso que o nó da voz perpasse tudo isto, para que quem se mantém vivo possa seguir em frente. A imagem das veias finas da terra, título da sua obra, demonstra o quão frágil é a vida. Ana Paula Tavares faz o leitor mergulhar na subjetividade feminina, sendo o feminino símbolo dos conhecimentos ilógicos, irracionais, como a noção de vida e morte, detentor desta fragilidade capaz de sustentar toda a terra com suas finas veias. Sobre este aspecto comenta:
“Com as “veias finas da terra” é, assim, uma metáfora da própria escrita poética. É conhecer e ter consciência da finitude da vida e lidar com o “cheiro ácido do pântano/ O silêncio gelado dos nossos mortos/ A presença inquieta dos outros/ O lento movimento das dunas” (TAVARES, 2011, p. 247). Logo, pensar a terra, é reescrever poeticamente Angola, é re-pensar a história angolana, indo “(...) pelos passos das crianças gritar num sul mais/novo” (Idem, p. 218).

OS NOVOS CADERNOS DE FABRO

Os novos cadernos de fabro, uma espécie de diário do fazer poético, são compostos por seis fragmentos. A parte I do poema inicia com um chamado contundente para o novo, “Não demore”, as imagens de luz e sombra agora seguem em uma contraposição entre o novo e o velho, na palavra de brilho que está à espera. Nos caminhos novos encontrados o sujeito lírico feminino se depara com sua história, “antigas fontes de beber sedes e sorrisos”, uma história que tem uma beleza nostálgica e aponta para o novo como uma necessidade material imposta, a “sede”. Os sinais velhos, são os vestígios de uma história apagada pelo colonizador, pela guerra, que insistem em deixar suas marcas no corpo e nas terras. A forte imagem, “Sou o deserto / sem as palavras”, expressa a vastidão violentamente devastada que se percorre nessa procura. Quem é esse sujeito que afirma e sabe, que busca sua ascendência para lançar seu futuro?

No fragmento II o caminho na busca pelo novo intensifica-se “pelos passos das crianças”, a geografia das “veias finas da terra” localiza-se mais precisamente ao sul, que é procurado e ressignificado, o sujeito poético quer seguir esses rastos para o novo. Esse desejo percorre o poema todo, em sua composição abusa de enjambements para entrecortar os versos e deixar espaços sem respostas. O desfecho do breve fragmento aponta uma direção, compondo uma imagem das perspectivas abertas pelo novo, “Talvez entretanto no pátio dos olhos tenha / Nascido a buganvília”, nesse lugar amplo do olhar, que acompanha o corpo e a memória de um povo, está a força de sua história, representada pela metáfora da árvore buganvília “forte na sua estrutura retorcida, de metal, e [que] resiste, podendo mesmo transformar-se em tecido fino aéreo se a isso o tempo a obrigar” (TAVARES Apud MACÊDO, 2011, p.1). No texto “O horizonte feminino, a paisagem da terra e o lirismo da buganvília: imagens (po)éticas em COMO VEIAS FINAS NA TERRA, Leonel Isac Maduro Velloso reflete sobre a imagem da buganvília (2018, p. 128):
Podemos afirmar que a buganvília é marca do lirismo da poeta, que, mesmo escamoteado por um tom elegíaco, deve ser entendido como metáfora poética do próprio sul que resistiu à colonização e à guerra civil. Simboliza a tradição na sua tensa relação com o presente – “sempre a renascer”. Também representa a escrita de Paula, a resistência da mulher, a esperança, a própria Angola. Poeta é quem escreve, mesmo em tempos sombrios. E, mesmo que diga palavras “amargas como os frutos”, segundo Paula, “a poesia é coisa viva e líquida e respira todos os pequenos espaços que encontra, mesmo no mundo doente em que vivemos.” (TAVARES Apud SECCO, 2014, p. 104)
A metáfora da árvore continua na parte III, as flores tentam impedir e consolar “o choro e o canto das raízes”, que em sua estrutura tem registrada a dor marcada naquela terra. Então, outra árvore estrondosa toma a paisagem, o jacarandá, o ritmo dos poemas é intercalado com breves e intensos movimentos, como se os olhos do leitor pudesse acompanhar a evolução e o florescer das árvores, o predomínio da luz atinge seu ápice na paisagem azul. Nos versos finais, “Doença assim é p’ra fazer gritar de / prazer”, as metáforas se contrapõem e se encontram, o florescer do novo, da natureza, da busca pela renovação da vida que brota das raízes, e o grito de prazer de uma relação carnal, doença terrena dos desejos mais submersos irrompendo tabus e traumas para transbordar e escorrer pela terra e pelo pó seus líquidos, seus gozos.

A sequência poética ganha fluidez e leveza, o lirismo das imagens embriagam e conduzem o leitor nesse percurso de uma espécie de flâneur entre a música que sai de uma concha, os sons do sino, a roupa fresca colhida e o mar. O fragmento IV marca um ponto de inflexão, a materialidade das metáforas por alguns momentos se abstrai, flashes de cenas compõem o tom confessional, que se intensifica. A parte V do poema aponta a subjetividade colocada nos objetos terrenos, que são feitos de versos e são o próprio fazer poético:
Aqui as pedras já não são pedras. O
sopro de vida que as
habita é um resto da fala antiga
de que são feitos
os versos. Fios de pólen
e líquenes
recriam
antigas danças de floresta. O mar
deixa o cheiro pelas mãos.
(TAVARES, 2011, p. 221)
Em um texto escrito para a revista Mulemba, Tania Macêdo adverte: “o longo poema, composto de VI partes, “OS NOVOS CADERNOS DE FABRO”, que retoma, do livro Manual dos amantes desesperados, o poema LIVRO DAS VIAGENS (caderno de Fabro), já referido” tem revisitações e espelhos importantes. A relação das pedras com o trabalho artesanal poético, recorrente na poesia de Paula Tavares, do labor braçal nos clãs às pedras colocadas nas filas pelas mulheres da cidade para guardar lugar e conseguir os alimentos racionados para suas famílias. No trecho a seguir do poema LIVRO DAS VIAGENS encontra-se uma dessas referências refletidas, o trabalho das mulheres com pedras antigas inventa o alimento e os dias, é também o que escorre os verbos:
De onde eu venho há pedras antigas
gastas das mãos das mulheres
que inventam a farinha de levedar
os dias
as aves rasam a mesa
quando se abrem os frutos e se debulha o milho
as mãos, as lentíssimas mãos,
acendem o fogo do meio.
Dividem-se as palavras e as cinzas
pode ser de paixão
para que escorram da boca
os verbos
soltos então pelo chão onde as crianças pousam
seus pés de leite e sono
(TAVARES, 2011, p. 196 - 197)
Fluidez e materialidade se fundem, o etéreo que está enterrado na lama, a luz que pulsa na noite escura, é dentro dessa eternidade que todas as pessoas vivem na tentativa de conviver com seus opostos, suas contradições, a dualidade inerente a sua história e subjetividade cindidas pelo processo de redescoberta e fundação de uma identidade pós-revolução. O fôlego do poema se contorce e a lama se impõe entre as imagens de movimentos bruscos, de solavancos e tentativas pelo novo, a terra e suas raízes são poderosas e não podem ser apagadas pelo vento, uma amálgama entre o desejo de futuro e a tradição persiste, “a eternidade navega uma / solidão de lama”.

Sendo assim, é possível dizer que Paula Tavares, nestes poemas analisados, utiliza de dualidades como luz e sombra, tradição e modernidade, o novo e o velho, vida e morte, para refletir as oposições vividas em Angola advindas de seu contexto histórico e social. Sua poesia traz paisagens e elementos da natureza como registro principalmente da subjetividade feminina, que é ricamente explorada na obra, demonstrando a importância das mulheres de Angola. Paula Tavares cumpre o papel de fazer o leitor mergulhar neste universo feminino de maneira fluida e com certa leveza. A forma de seus poemas em fragmentos soltos trazem essa essência corrente de sua poesia. O título, COMO VEIAS FINAS NA TERRA, aparece como um prenúncio da fragilidade presente numa terra permeada dos vestígios e marcas da colonização, mas que resistiu e continuará resistindo, pulsando vida, como a força de suas mulheres.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS   

ANTUNES, Erica. De missangas e catanas: a construção do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos e moçambicanos. Tese de Doutoramento.  São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010.

FANON, Franz. Da Violência. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MACÊDO, Tania. A delicadeza e a força da poesia. Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 4, p. 38-43, jul. 2011.

TAVARES, Paula. Como veias finas na terra. Amargos como os frutos: poesia reunida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

VELLOSO, Leonel Isac Maduro. O Horizonte feminino, A paisagem da terra e o lirismo da Buganvília: Imagens (Po)Éticas em Como veias finas na terra, de Paula Tavares. Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, Volume 10, Número 19, jul.-dez. 2018.

VISENTINI, Paulo Fagundes. As Revoluções Africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.










4.12.19

A marvada carne

Resenha do filme A Marvada Carne (1985) de André Klotzel, com Fernanda Torres, Adilson Barros e Regina Casé, um clássico, ganhou vários prêmios, inclusive de melhor filme no Festival de Gramado. Fiz pra aula de Cultura e Sociedade na FATEC, Profa. Virgínia Namur, em 2008.

"... o homem, meio caipira, meio desprevenido, cercado de fileiras e prateleiras coloridas, mais que comida, mais que objeto de desejo, aproveita a chance, rouba um pedaço de filé e corre, a carne do pé contra o concreto e a "marvada carne" contra o peito."
           (epígrafe minha mesmo, em 2008 era mais ousada como Cruz e Sousa rs)



            Lá dos cafundós do interior sai Nhô Quim, típico caipira, numa trajetória através de seu tempo, suas crenças, culturas e lendas para se deparar com o concreto, um choque cultural que o absorve de tal forma, encaixando (agora ele é consumidor) e marginalizando, passa a ser o suburbano da favela. A carne na grelha do churrasco e a paisagem limitada pelas lajes.

          Da cultura popular que o telespectador resiste em abandonar, pois encanta e diverte com o resgate do folclore e das raízes tão peculiares e ao mesmo tempo líricos. A escassez da carne, a pele envelhecida pelo sol, os horizontes, o mato, o pé no chão sujo de terra, som de cigarras e coaxar de sapos, o jeito de falar "conversa foi coisa que nunca fartou a esse fio de meu pai", tiro de espingarda em curupira, moça Carula donzela da roça, que discute com Santo Antônio, que nada pelada no rio que nunca mais vai dar peixe e que bebe do mesmo copo pra descobrir todos os segredos do pretendente, destaque para a forma de religião simples, bruta, pouco rebuscada, sempre permeada de superstições, lendas e anedotas. O fogão à lenha, arroz, feijão e abóbora em prato de barro e marmita na trouxinha de pano, toda a comunidade ajudando a preencher de barro a estrutura de madeira das casas, o plantio semente por semente, enxada, festa em volta da fogueira de São João, São Roque e o casório fugido no cartório da cidade pequena (casamento esse, que o pai Nhô Totó não podia aprovar, mas que depois de realizado foi de muito bom grado).

          Os dois caipiras casados, dois filhos e nada da carne de boi, foi quando Nhô Quim resolve confrontar o diabo na busca definitiva pra mudar de vida. Negocia uma galinha preta com uma mocinha perdida num matagal e resiste por pouco a tentação, quase perdendo a galinha e o dinheiro pra um diabo que se revela muito bem paramentado, com cinta-liga preta, salto alto, rabo peludo, maquiagem carregada e voz distorcida.

          Com o dinheiro, Nhô Quim pega um trem rumo à cidade grande para cumprir seu destino, e a cultura popular se depara com a cultura de massa na primeira vitrine, no encontro com o boi, muitos bois, brilhantes e ofuscantes nas telas das televisões empilhadas diante dos olhos deslumbrados. Barulho de carros, anda perdido pelas ruas, passa por um açougue, um caminhão de carnes, a abundancia que alimenta os sonhos e distancia a realidade. Para em frente de uma loja de sapatos, numa fotografia da poesia-conflito, do sonho, do desejo e da desigualdade, sentado na calçada com os pés descalços, tão perto daquilo que não pode ter.

          No saqueamento de um supermercado, fica datada a mudança, e o homem, meio caipira, meio desprevenido, cercado de fileiras e prateleiras coloridas, mais que comida, mais que objeto de desejo, aproveita a chance, rouba um pedaço de filé e corre, a carne do pé contra o concreto e a "marvada carne" contra o peito.



DOCUMENTÁRIO ENCONTRO COM MILTON SANTOS OU O MUNDO GLOBAL VISTO DO LADO DE CÁ

Trabalho apresentado para disciplina de Teoria da Cultura do
Prof. Dennis de Oliveira no curso Gestão de Projetos Culturais em 2012

“É preciso explicar porque o mundo de hoje, que é horrível, é apenas um momento do longo desenvolvimento histórico e que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e das insurreições e eu ainda sinto a esperança como minha concepção de futuro.” (SARTRE, Jean Paul, 1963, Prefácio de “Os condenados da Terra”, de Frantz Fanon)



O documentário Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá, com direção de Silvio Tendler, 2006, é uma proposta admirável, ambiciosa e brava de encarar uma leitura da conjuntura social na era da globalização, para além do mercado, da economia e do sistema vigente. Uma análise sincera e audaciosa dos tipos de humanidade, de ética e de problemas provenientes do modo operante da globalização. Problemas que são encarados como uma realidade construída e com perspectiva otimista de enfrentamento e reconstrução.

Um filme realizado com poucos recursos, as entrevistas aconteceram com o apoio de um único assistente e uma câmera digital de tecnologia defasada. Depois da entrevista com Milton Santos em 2001, o processo de filmagem e edição durou cinco anos. Como conta Silvio Tendler “como quase todos os meus filmes, é um quebra-cabeça. Não tento simplificar o processo de produção, nem tenho pretensão de inovar na linguagem cinematográfica. O objetivo é me comunicar com os espectadores”.

O documentário é constituído pela conversa com Milton Santos gravada em 4 de janeiro de 2001, poucos meses antes de sua morte, e por trechos de seus aclamados discursos. Recortes de entrevistas e discursos de José Saramago, Eduardo Galeano, Celso Amorim, líderes e ativistas de movimentos populares, do polêmico e intragável diretor geral do Banco Mundial em 2003, Peter Woicke, entre outros, complementam e ilustram a discussão proposta. 

Além das falas, narrativas e imagens jornalísticas, uma série de recursos dinâmicos e gráficos são usados para facilitar o entendimento do expectador e tornar concreto o que muitas vezes parece, propositadamente, confuso e nebuloso demais para se formar uma opinião. O fio condutor escolhido para o documentário é claro e não deixa dúvidas, muita coisa aconteceu na História e continua acontecendo, passando por cima de resistências e de questionamentos sem respostas. A ética dominante é a tramada por um punhado de empresas, que como diz Milton Santos, decidiram fazer desse mundo um mundo perverso.

O documentário passa por momentos históricos como o Consenso de Washington de 1989, com seu conjunto de medidas recomendadas por economistas para promover o ajustamento macroeconômico, que surtiu efeitos violentos com levantes populares contra as privatizações no Equador, na Bolívia e na Argentina. O 3º Fórum Mundial da Água em Kioto, no Japão, 2003, em que acima de toda a manifestação popular em defesa da água como um bem comum global e que precisa ser defendido pelo Estado, prevalece a posição das transnacionais da água como um bem econômico e que precisa ter um preço no mercado. O Fórum mundial econômico em Davos, 2006, com seus fundos solidários para anestesiar a pobreza e não encarar profundamente a questão da desigualdade. 

Mostra as formas de exploração da mão de obra do 3º Mundo, como a fragmentação do território e o frouxo controle do Estado, permitem relações de trabalho sem responsabilidade social e moral. Mostra o movimento dos imigrantes que desistindo de lutar por melhores condições de vida em seus territórios, preferem enfrentar a intolerância e a exploração em terras estrangeiras, nas quais estão fadados a viver à margem. 

Um assunto com participação importante no documentário é o papel da mídia. Segundo Milton Santos, a mídia atua como intermediária entre a sociedade e um pequeno número de agências internacionais da informação, estreitamente ligadas ao mundo da produção material e das finanças. Essa estreita ligação controla de maneira eficaz a interpretação do que está se passando no mundo, tanto que esse controle se torna evidente quando vemos a repetição servil das mesmas fotografias e manchetes nos mais diversos veículos de informação.

Por outro lado, a tecnologia, a internet, a rede de informações acessíveis e a apropriação da população da cultura de massa, torna possível outro fluxo de informações, alternativo. Passam a existir maneiras de mostrar o que a mídia não está disposta ou não tem interesse em mostrar. As camadas “de baixo” ganham voz e ferramentas para divulgar suas culturas, suas questões, a busca por sua identidade. A comunicação direta pode ser um meio de exercer a liberdade e a cidadania.

Os trechos de discursos são os momentos mais fortes, tanto dos teóricos, como dos líderes e ativistas populares, o calor e a força do direito legítimo de se manifestar transpassam a tela, o momento de falar e ser ouvido. O momento de escancarar a teoria e a realidade com o peso de quem nasceu negro, índio, pobre, colonizado. E ousou ser cidadão, político, ativo e intelectual, não só dos livros, mas da vida e da cultura, de quem vive e estuda as limitações do ser humano e mesmo assim escolhe acreditar na capacidade humana de lutar, transformar, resistir e existir. Como numa fala de Milton Santos “descolonizar é olhar o mundo com os próprios olhos, pensá-lo de um ponto de vista próprio. O centro do mundo está em todo lugar: o mundo é o que se vê de onde se está”.

Mais do que didático, oportuno e necessário, o documentário transmite a urgência dos acontecimentos, o equívoco do ruído da era da informação, a lógica absurda a que cedemos a cada dia, a que escolhemos em cada ação. Resistir ou ceder, e que como brasileiros colonizados, ainda cedemos muito mais do que resistimos. 

Conclusão

“El alto de pé, nunca de rodillas”
(lema do povo boliviano)

Enxergar com exatidão os atores desse jogo de poder mundial deixa claro que só existe muita riqueza porque existe extrema pobreza. E isso, por mais óbvio que seja, precisa ser desenhado e provado. Mais que isso, para vencer a insensibilidade, o estado anestesiado, causado pela enxurrada de estímulos consumistas desnorteadores que recebemos da mídia a todo momento, precisamos enxergar nitidamente e ouvir a força do grito, do desespero, do choro, da desgraça, para sentir o rosto arder, o coração humano pulsar e acordar. Fica claro o quanto é preciso colocar a cara a tapa, não ter medo de participar e de errar.

Olhar o mundo e questionar seu sentido, duvidar de sua lógica, sentir empaticamente o discurso do outro e querer unir sua força a dele, resistência. Tudo em algum momento acontece de maneira simples e escolhemos ceder ou resistir. E ceder pode parecer tão mais fácil, e pode dar menos trabalho, isso é ilusão, é propaganda descaradamente enganosa. Não negar a complexidade e a seriedade de cada escolha, no âmbito pessoal, social, político, coletivo, é determinante para a realidade em que vivemos hoje e para o futuro que estamos construindo agora. A perversidade da globalização não é uma escolha nossa.




Referências bibliográficas

TENDLER, Silvio. “Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá”. Documentário. Rio de Janeiro: Produções Cinematográficas Caliban, 2006.

Geografia para todos, http://www.geografiaparatodos.com.br/index.php?pag=sl199 - data de acesso 22/03/2012.

OLIVEIRA, Dennis de. “Ideologia e/ou cultura: o mal estar da contemporaneidade”. Revista Altejor, Ano 01, Volume 01, Edição 00, 2009. 




18.11.19

João Porém e Jozu: isolamento e delírio lírico em Guimarães Rosa e Hilda Hilst

Yuna Ribeiro

trabalho apresentado na disciplina Literatura Brasileira II da Letras,
para a Professora Eliane Robert Moraes em 2018


… lo contrario de la verdad no es la mentira, ni en la poesía, ni en el arte, ni en la vida; lo contrario de la verdad es el error - cosa racional, exclusivamente racional -.’El fraude, el engaño y la mentira’, nos dice Cervantes. Lo contrario de la verdad es la razón, nos dirá Shakespeare. Y Cervantes, la burla. 
(José Bergamín, 1959, p. 101)

ilustração Beatriz Vecchia


O isolamento e delírio lírico são marcas dos personagens João Porém e Jozu, a relação afetiva com seus animais garante o sustento material e emocional de suas existências marginalizadas; João Porém criador de perus em uma aldeiazinha, Jozu encantador de ratos em lugar nenhum. Os contos escolhidos, de Guimarães Rosa e Hilda Hilst, colocam em perspectiva exemplos da linguagem poética e da reflexão sobre a existência na obra desses dois autores tão distintos.

Em João Porém, o criador de perus a ficção ganha profundidade e extensão com a liberdade poética de seus neologismos e ritmo, o narrador em terceira pessoa, próximo ao leitor, coloca suas reflexões filosóficas disfarçadas por uma oralidade rural. A pontuação peculiar e recortada, usando frases curtas e excessivos pontos e vírgulas, demarca seguidas pausas da respiração no falar. Em tom encadeado e de provérbios, as constatações sobre o limite da existência e a solidão saltam de uma história ligeiramente simples, de um sertanejo sem pai, nem mãe, que se apega a uma criação de perus, sua herança no mundo. No trecho a seguir, destacam-se exemplos dessa linguagem em tom de provérbio, entrecortada pela pontuação e com o uso de neologismo, além de demonstrar o valor extremo dado aos perus numa espécie de escala comparativa com o amor platônico por Lindalice, Guimarães Rosa (2009, p. 82 - 83): 
Porém perseverava, considerando o tempo e a arte, tão clara e constantemente o sol não cai do céu. No fundo, coqueirais. Mas inventaram, a despautação, de espevitar o espírito.

Incutiram-lhe, notícia oral: que, de além-cercanias, em desfechada distância, uma ignorada moça gostava dele. A qual sacudida e vistosa - olhos azuis, liso o cabelo - Lindalice, no fino chamar-se. João Porém ouviu, de sus brusco, firmes vezes; miúdo meditou. Precisava daquilo, para sua saudade sem saber de quê, causa para ternura intacta. Amara-a por fé - diziam, lá eles. Ou o que mais, porque amar não é verbo; é luz lembrada. Se assim com aquela como o tivessem cerrado noutro ar, espaço, ponto. Sonha-se é rabiscos. Segredou seu nome à memória, acima de mil perus, extremadamente. 
No sentimento de identificação e dever por seus animais, órfãos como ele, João Porém larga a possibilidade de um amor falso ou real, e persiste no saudosismo idealizado do amor platônico, seja por uma Lindalice morta, fruto de um plano inescrupuloso de seus conterrâneos para comprar suas posses, seja pela criação de perus, objeto da única relação afetiva real estabelecida até sua morte. No excerto a seguir, Rosa (2009, p.83), é possível observar a negação da realidade pelo personagem, que não quer acreditar na inexistência de Lindalice, além do uso de neologismos, como furtivar-se e indestruía-a, que concentram e potencializam o lirismo dramático de cada reflexão:
De dó ou cansaço, ou por medo de absurdos, acharam já de retroceder, desdizendo-a. Porém prestou-lhe a metade surda de seus ouvidos. Sabia ter conta e juízo, no furtivar-se; e, o que não quer ver, é o melhor lince. Aceitara-a, indestruía-a. Requieto, contudo, na quietude, na inquietude. O contrário da ideia-fixa não é a ideia solta.
No conto O grande-pequeno Jozu, de Hilda Hilst, o narrador está na primeira pessoa e a expansão lírica da ficção manifesta-se nos fluxos de consciência do personagem principal, tanto para contar acontecimentos curiosos do cotidiano nas relações com Jesuelda, Guzuel e Stoltefus, como para alcançar um discurso metafísico e delirante sobre a relação com seu rato acrobata e com as vozes no fundo do poço seco. Jozu apresenta uma vida aparentemente mais agitada, tem um envolvimento carnal com Jesuelda, que se preocupa com ele, tem uma amizade singela com Guzuel, que rende momentos engraçados e de zombaria, e uma amizade perturbadora com Stoltefus, por quem alimenta admiração e medo. No entanto, seu isolamento ganha destaque nos pensamentos, quando busca o fundo do poço e as vozes que o confortam, revelando a estranheza sentida, que o afasta do mundo fora do poço e das pessoas. No trecho a seguir nota-se a importância desse deslocamento na consciência de Jozu, Hilda Hilst (2003, p. 71):
Saber que um poço te ensina a ser mais e que não adianta você repetir que é um entendimento que se faz lá dentro, e que o poço é embaixo, mas o que você compreende parece vir de cima, não de cima de mim, Jozu, um de cima mais fundo, um de cima vivendo lá embaixo, ai, como é difícil dizer desse saber para o outro que te escuta.
Hilst também apresenta nesse conto uma linguagem própria e diversa da norma padrão, a falta de pontuação e o diálogo interno do próprio personagem sobre o uso das palavras caracterizam uma oralidade com humor e lirismo, como pode-se identificar nesse jogo de palavras e de intimidades de Jozu com Jesuelda, em que também se revela numa comparação do valor dado a relação com seu rato (2003, p. 60):
Quem sabe se ela sabe que eu gosto mais do rato do que dela, doquedela doquedela, dizer doquedela me lembrou querela outra vez, querela é uma palavra que eu ouvi o outro dia quando briguei com um homem lá na Esquina dos Ratos, por causa do meu rato. Aí apareceu um homem de bengala e chapéu, que devia ser da Esquina dos homens e disse Evitai querela nas esquinas, onde é que está o vosso pudor? Fiquei besta, o homem que brigava comigo também ficou besta, e nos olhamos e nos afastamos. Querela, cruzes, que esquisito. Pudor já é mais bonito. Quando eu quis morder a Jesuelda lá na coisa gramosa e escondida, (gramosa é muito bonito, é coisa que eu ouço no fundo do poço seco) ela me disse Para aí, você não tem pudor, que coisa.
A forma como Guimarães Rosa e Hilda Hilst usam a linguagem poética para subverter a repetição das vidas comuns, em uma reflexão sobre a existência, o isolamento e a loucura, ganha aspectos extremamente próximos ao representar algo de fantástico na relação de identificação e amor dos personagens com seus animais. Para João Porém e Jozu não há problema nisso, no entanto o embate com o estranhamento, zombaria e nojo ao seu redor revelam a condenação e tristeza da situação. Em dado momento, numa provocação de Guzuel com Jesuelda e Jozu, propondo uma relação sexual à três, Guzuel desafia que cada um fale algo muito desejado, mas que dê vergonha dizer na frente dos outros, a resposta de Jozu quebra instantaneamente a obscenidade cômica da cena e revela algo de melancólico e mórbido, Hilst (2003, p. 65 - 66):
E disse: ficar para sempre no fundo do poço seco com meu rato. Foi horrível ter dito isso porque o Guzuel ficou com muita raiva, a Jesuelda começou a chorar, o Guzuel gritou que não era bonito eu dizer isso porque isso que eu disse era muito triste, e ninguém mais podia pensar em meter depois de ouvir isso. Achei bastante singular que isso tirasse a vontade de meter e respondi que não tive a intenção de atrapalhar, e que eu tinha mesmo vergonha de dizer essa frase na frente de qualquer um. A Jesuelda continuava chorando e entre um soluço e outro dizia que nunca podia meter em paz com Guzuel porque vivia tendo pena de mim. Ela falou assim: essa tua cabeça virada de banda, o teu olho sempre molhado, e o teu rato.    
João Porém melancolicamente também se recusa a viver a vida como esperam dele, em sua única fala direta revela o profundo fatalismo e resignação “Esta não é a minha vez de viver…”, assim como nas locuções do narrador, que mais parecem fluxos-poéticos transbordados do autor “Infelicidade é questão de prefixo”, “viver é um rasgar-se e remendar-se”, “imóvel apaixonado: como a água, incolormente obediente” e “Ele fora ali a mente mestra. Mas, com ele não aprendiam, nada”. Em entrevista à Folha de São Paulo, Jacques Rancière, filósofo e crítico francês, reflete como a ficção poética de Guimarães Rosa subverte a hierarquia das temporalidades, que tradicionalmente define as histórias que merecem ser contadas ou não, na obra de Rosa, assim como no conto João Porém, o criador de perus o tempo dos acontecimentos sensíveis ganha o foco:
Aristóteles baseia a racionalidade ficcional sobre uma hierarquia entre dois tipos de temporalidade: há a crônica, que diz só como as coisas acontecem, uma depois outra, e a ficção poética, que diz como as coisas podem acontecer, de acordo com uma sequência de causas e efeitos a produzir e inverter expectativas.Ele restringe, dessa forma, a ficção a uma categoria privilegiada, aqueles que vivem no tempo da ação, oposto ao da reprodução, que é o das pessoas comuns.A revolução da ficção moderna foi rejeitar tal hierarquia  e se concentrar no momento qualquer. Este é o tempo dos eventos sensíveis sem hierarquia, que incluem a existência comum, tradicionalmente excluída da ficção. é o momento em que o ‘acontece’ está próximo do ‘nada acontece’.
No desfecho de O grande-pequeno Jozu o sentimento de isolamento e desamparo chegam ao limite do nojo e da loucura, o fluxo delirante confunde a história com sonho, e qualquer sentido possível com angústia, “Agora vou olhar a noite. E alguma coisa me diz que é a minha última noite, que o rato, o poço, são as únicas coisas que fazem parte de mim, e que os outros, de tudo o que sou - Jozu, rato, poço - terão eternamente apenas nojo. ” Hilst (2003, p.77).  Em um artigo sobre a narrativa hilstiana em Rútilo Nada, obra publicada em livro com título Rútilos e que reúne contos como O grande pequeno-Jozu, Weverson Dadalto também aborda o quanto é tênue os limites entre os gêneros e fala sobre a relação direta da angústia com esses fluxos poéticos (2010, p.134):
A recusa a render-se definitivamente ao poema, contudo, aponta para outro cuidado: o medo das formas e das armadilhas da linguagem, a certeza de que um muro não perde a validade apenas pelo afastamento dos seus limites, a precaução em não deixar a estética anestesiar a angústia. Afinal, não se admite um gênero, por mais sublime que se possa considerá-lo; lateja neste texto hilstiano a tentativa de ofender a soberania dos gêneros, de afirmar uma liberdade possível, embora com o risco de perder-se no caos. Desafiando a classificação genérica, Rútilo Nada desautoriza qualquer tipo de classificação: injúria a linguagem e suas formas; uma revolta, contudo, submissa, já que sabe que não pode subtrair-se à linguagem a não ser pela morte.
Por fim, pode-se concluir então, que esses pontos de contato são significativos nesses dois contos, tanto para a análise do tipo de linguagem poética usada na ficção, como para o tema, que coloca uma lupa de aumento nos mais insignificantes animais e personagens, levando-os ao campo dos sonhos e do imaginário popular de causos estranhos. Como melhor pode expressar Guimarães (apud LORENZ, 1994, p.47) “a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida.”



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS   

BERGAMÍN, José. “Cervantes”. Fronteras infernales de la poesía. Madrid: Taurus, 1959, p. 99-122.

DADALTO, Weverson. “Muros de linguagem em Rútilo Nada, de Hilda Hilst”. CONTEXTO - Revista Semestral do Programa de Pós-graduação em Letras da UFES, 2010, p. 134.

HILST, Hilda. Rútilos. São Paulo: Globo, 2003, p. 56 - 77.

LORENZ, G. Diálogo com Guimarães Rosa. Obras completas de João Guimarães Rosa Vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.47.

ROSA, Guimarães. Tutameia: terceiras estórias. 9º Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2009, p. 82 - 84.

RANCIÈRE, Jacques. “A escrita é invenção, não um processo de aplicação de ideias”. Folha de São Paulo - Ilustrada, acessada em 8 de dezembro de 2018, link:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/03/a-escrita-e-invencao-nao-um-processo-de-aplicacao-de-ideias-diz-jacques-ranciere.shtml?fbclid=IwAR110sPGDmvxU5P56raNIkH3GiDbXMuP_wEdVS2YJB9Cs7U0dNVgRiuPHbQ