19.9.11

Melancolia 2

Antes de qualquer coisa:

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer". Trecho de "São Bernardo", de Graciliano Ramos.
Esse trecho perfeito e oportuno peguei emprestado do blog Sentir por Escrito.


Na sexta passada assisti Melancolia, um filme de Lars Von Trier, saí da sessão com uma impressão ruim, depois disso, até ontem, estava determinada na tarefa de explicar o quanto não gostei do filme. No entanto, nesse processo maluco que é escrever, passei a gostar cada vez mais de Melancolia, e ao mesmo tempo, a colocar à prova minha opinião sobre Árvore da Vida.
Melancolia passa uma impressão tétrica e fatalista sobre a vida, as emoções aparecem travestidas de desespero e sentimentalismo.

"Lembre-se sempre de ir direto às partes e, ao dissecá-las, conseguir alcançar o seu desencantamento" Marco Aurélio
Nos últimos dias venho concordando com essa frase com convicção, e na minha repetição interna nas situações à minha volta ela caiu em contradição, Melancolia não poderia ser de outra forma, é um filme difícil e que precisa ser analisado com cuidado e método, a cada parte ganhando absorção.

Se quiser tirar o encanto e significado de algo, separe e analise metodicamente as partes. Se quiser sentir algo de verdade, mergulhe e apenas sinta. Mergulhar e sentir, é exatamente o que aconteceu em Árvore da Vida. Exatamente o contrário aconteceu em Melancolia, pois essa foi a maneira escolhida para mostrar o sentimento de solidão absoluta, de desconexão, da falta de sentido. Além de ser literalmente dividido em duas partes, Justine e Claire, Melancolia é feito de partes desconexas o tempo todo. Nesse filme todos estão fatidicamente sozinhos e não têm escolha.

O que aconteceu então é que eu escolhi não mergulhar no filme, para alguém que leva o cinema tão a sério isso poderia significar entrar numa grande depressão e desejar o fim, exatamente como Justine, exatamente como uma pessoa deprimida e que se sente completamente sozinha, talvez como Lars Von Trier (?).


A Terra é destruída por um planeta chamado Melancolia e nada pode ser feito. Nada.
O que significa melancolia? Uma tristeza vaga e persistente, algo destrutivo, depressão, tristeza profunda. Muitos podem dizer que já sentiram isso, talvez não o tanto que é possível sentir para de fato concordar com o fim da vida na Terra, no Universo, mas o suficiente para achar que nada faz sentido.

A cena em que Justine anda pesadamente com seu vestido volumoso de noiva por um lugar escuro e úmido, seus tornozelos amarrados por fios de lã cinza, emaranhados e pesados, mesmo com toda sua força o movimento é em câmera lenta. Em outro recorte seu rosto deitado no travesseiro e seus olhos que não querem abrir, a voz sai devagar e pesada também, o mundo supostamente normal a sua volta não consegue entender nem enxergar tudo o que se passa ali, internamente, no lugar ermo e deserto em que se instala a mais profunda melancolia. Essas imagens compõem o retrato perfeito da depressão, de uma tristeza sem fim que não deixa quem a sente seguir em frente, respirar.


Ao mesmo tempo precisamos de uma certa melancolia, uma tristeza que faz parte da vida, é inevitável e necessária para dar um tom de realidade, possibilitar a empatia e causar dúvidas com relação as ilusões criadas a nossa volta, sem isso corremos o sério risco de nos tornarmos alienados, insensíveis e até mesmo palhaços.

Entrei nessa empreitada louca de comparar Árvore da Vida com Melancolia e nesse processo cada vez mais percebo que um filme não tem absolutamente nada em comum com o outro. Em Árvore da Vida o amor permeia todas as relações, até mesmo na mais cruel das incoerências do pai temos uma perspectiva do amor que existe ali. Gostei de cada sutileza que o filme mostra de maneira ampliada e escandalosamente nítida. Considero que o filme inteiro se passa na cabeça da personagem Jack de Sean Penn, uma vida de lembranças, impressões, sentimentos bons, confusos, doloridos e curiosos.

A viagem muito além do nosso tempo e espaço mostra como somos ingenuamente ambiciosos, como queremos e precisamos entender mais que o mundo a nossa volta, entender o universo, de onde viemos e o que existiu antes de nós.

Uma história praticamente auto-biográfica, uma entrega, até onde é possível ir pelo amor, o filme em muitos momentos é uma grande declaração de amor ao irmão do meio que morre, à família, ao pai severo, à mãe que ensina o amor e vive o amor em cada gesto. Esse filme não tem valor se analisado e esmiuçado em suas razões e formas de ser, é um filme para sentir. E como o próprio Sean Penn já falou numa declaração à imprensa, algumas pessoas se conectam ao filme de tal maneira que ficam completamente tocadas, emocionadas, e foi isso que aconteceu comigo. Outras, em face ao mesmo filme, bocejam e/ou odeiam tudo.

Numa parte do filme a Senhora O'Brien diz algo como "a única maneira de sua vida não escapar, não passar rápida e vazia, é viver o amor". Isso pode soar piegas, sim claro, assim como todas as cartas de amor ridículas, no entanto, quem não prefere viver um grande amor à viver a solidão absoluta, fria e dura de Melancolia.

Em Melancolia temos a perspectiva do fim do mundo e da vida através de uma visão absolutamente solitária, somos sozinhos no universo, sozinhos na família, na relação das irmãs elas estão completamente sozinhas, isoladas uma da outra. O filho é mais uma peça no quebra-cabeça, uma peça isolada. O marido sozinho em sua esperança e em seu erro abandona a família covardemente.

Claire, a irmã apegada a vida, representa o mundo ao nosso redor, quando tudo está próximo do fim não consegue se conectar às duas pessoas que restam, tenta agonizar veladamente e continuar se enganando com rituais para disfarçar a realidade, se desespera completamente.

Justine, a irmã doente, deprimida, não teme o fim, concorda com o fim de tudo, é fria porque não tem vínculos com a vida, acredita verdadeiramente que a vida não tem sentido, que essa vida é intrinsecamente ruim, é como se ela já não estivesse lá, nunca esteve.

Tudo isso está por aí a nossa volta. Nosso mundo pode estar perto do fim, de certa maneira caminhamos nesse sentido a cada dia. No entanto, constatar isso com frieza e fatalismo significa constatar a nossa incapacidade de sentir, se emocionar, se comover, mudar e, principalmente, de sair do buraco sem fim que pode ser uma depressão.

A fotografia e as músicas são incríveis, as cenas do planeta Melancolia são perfeitas e a atuação da Kirsten Dunst está maravilhosa.

Destaque bem humorado de Melancolia (sim existe!): o organizador do grande casamento que se recusa a olhar para a noiva Justine depois que a mesma começa a arruinar a festa.


E para concluir finalmente concordo plenamente com a Juli: "Acho que o que importa é O FILME e não a ideia que as pessoas fazem dele, afinal isso é cinema, você entrar na sala aberto, disposto a mergulhar na viagem proposta, seja boa ou ruim... para mim isso é o cinema puro."

Perfeito! Muito orgulho da minha irmã/alma gêmea!! rsrs