18.11.19

João Porém e Jozu: isolamento e delírio lírico em Guimarães Rosa e Hilda Hilst

Yuna Ribeiro

trabalho apresentado na disciplina Literatura Brasileira II da Letras,
para a Professora Eliane Robert Moraes em 2018


… lo contrario de la verdad no es la mentira, ni en la poesía, ni en el arte, ni en la vida; lo contrario de la verdad es el error - cosa racional, exclusivamente racional -.’El fraude, el engaño y la mentira’, nos dice Cervantes. Lo contrario de la verdad es la razón, nos dirá Shakespeare. Y Cervantes, la burla. 
(José Bergamín, 1959, p. 101)

ilustração Beatriz Vecchia


O isolamento e delírio lírico são marcas dos personagens João Porém e Jozu, a relação afetiva com seus animais garante o sustento material e emocional de suas existências marginalizadas; João Porém criador de perus em uma aldeiazinha, Jozu encantador de ratos em lugar nenhum. Os contos escolhidos, de Guimarães Rosa e Hilda Hilst, colocam em perspectiva exemplos da linguagem poética e da reflexão sobre a existência na obra desses dois autores tão distintos.

Em João Porém, o criador de perus a ficção ganha profundidade e extensão com a liberdade poética de seus neologismos e ritmo, o narrador em terceira pessoa, próximo ao leitor, coloca suas reflexões filosóficas disfarçadas por uma oralidade rural. A pontuação peculiar e recortada, usando frases curtas e excessivos pontos e vírgulas, demarca seguidas pausas da respiração no falar. Em tom encadeado e de provérbios, as constatações sobre o limite da existência e a solidão saltam de uma história ligeiramente simples, de um sertanejo sem pai, nem mãe, que se apega a uma criação de perus, sua herança no mundo. No trecho a seguir, destacam-se exemplos dessa linguagem em tom de provérbio, entrecortada pela pontuação e com o uso de neologismo, além de demonstrar o valor extremo dado aos perus numa espécie de escala comparativa com o amor platônico por Lindalice, Guimarães Rosa (2009, p. 82 - 83): 
Porém perseverava, considerando o tempo e a arte, tão clara e constantemente o sol não cai do céu. No fundo, coqueirais. Mas inventaram, a despautação, de espevitar o espírito.

Incutiram-lhe, notícia oral: que, de além-cercanias, em desfechada distância, uma ignorada moça gostava dele. A qual sacudida e vistosa - olhos azuis, liso o cabelo - Lindalice, no fino chamar-se. João Porém ouviu, de sus brusco, firmes vezes; miúdo meditou. Precisava daquilo, para sua saudade sem saber de quê, causa para ternura intacta. Amara-a por fé - diziam, lá eles. Ou o que mais, porque amar não é verbo; é luz lembrada. Se assim com aquela como o tivessem cerrado noutro ar, espaço, ponto. Sonha-se é rabiscos. Segredou seu nome à memória, acima de mil perus, extremadamente. 
No sentimento de identificação e dever por seus animais, órfãos como ele, João Porém larga a possibilidade de um amor falso ou real, e persiste no saudosismo idealizado do amor platônico, seja por uma Lindalice morta, fruto de um plano inescrupuloso de seus conterrâneos para comprar suas posses, seja pela criação de perus, objeto da única relação afetiva real estabelecida até sua morte. No excerto a seguir, Rosa (2009, p.83), é possível observar a negação da realidade pelo personagem, que não quer acreditar na inexistência de Lindalice, além do uso de neologismos, como furtivar-se e indestruía-a, que concentram e potencializam o lirismo dramático de cada reflexão:
De dó ou cansaço, ou por medo de absurdos, acharam já de retroceder, desdizendo-a. Porém prestou-lhe a metade surda de seus ouvidos. Sabia ter conta e juízo, no furtivar-se; e, o que não quer ver, é o melhor lince. Aceitara-a, indestruía-a. Requieto, contudo, na quietude, na inquietude. O contrário da ideia-fixa não é a ideia solta.
No conto O grande-pequeno Jozu, de Hilda Hilst, o narrador está na primeira pessoa e a expansão lírica da ficção manifesta-se nos fluxos de consciência do personagem principal, tanto para contar acontecimentos curiosos do cotidiano nas relações com Jesuelda, Guzuel e Stoltefus, como para alcançar um discurso metafísico e delirante sobre a relação com seu rato acrobata e com as vozes no fundo do poço seco. Jozu apresenta uma vida aparentemente mais agitada, tem um envolvimento carnal com Jesuelda, que se preocupa com ele, tem uma amizade singela com Guzuel, que rende momentos engraçados e de zombaria, e uma amizade perturbadora com Stoltefus, por quem alimenta admiração e medo. No entanto, seu isolamento ganha destaque nos pensamentos, quando busca o fundo do poço e as vozes que o confortam, revelando a estranheza sentida, que o afasta do mundo fora do poço e das pessoas. No trecho a seguir nota-se a importância desse deslocamento na consciência de Jozu, Hilda Hilst (2003, p. 71):
Saber que um poço te ensina a ser mais e que não adianta você repetir que é um entendimento que se faz lá dentro, e que o poço é embaixo, mas o que você compreende parece vir de cima, não de cima de mim, Jozu, um de cima mais fundo, um de cima vivendo lá embaixo, ai, como é difícil dizer desse saber para o outro que te escuta.
Hilst também apresenta nesse conto uma linguagem própria e diversa da norma padrão, a falta de pontuação e o diálogo interno do próprio personagem sobre o uso das palavras caracterizam uma oralidade com humor e lirismo, como pode-se identificar nesse jogo de palavras e de intimidades de Jozu com Jesuelda, em que também se revela numa comparação do valor dado a relação com seu rato (2003, p. 60):
Quem sabe se ela sabe que eu gosto mais do rato do que dela, doquedela doquedela, dizer doquedela me lembrou querela outra vez, querela é uma palavra que eu ouvi o outro dia quando briguei com um homem lá na Esquina dos Ratos, por causa do meu rato. Aí apareceu um homem de bengala e chapéu, que devia ser da Esquina dos homens e disse Evitai querela nas esquinas, onde é que está o vosso pudor? Fiquei besta, o homem que brigava comigo também ficou besta, e nos olhamos e nos afastamos. Querela, cruzes, que esquisito. Pudor já é mais bonito. Quando eu quis morder a Jesuelda lá na coisa gramosa e escondida, (gramosa é muito bonito, é coisa que eu ouço no fundo do poço seco) ela me disse Para aí, você não tem pudor, que coisa.
A forma como Guimarães Rosa e Hilda Hilst usam a linguagem poética para subverter a repetição das vidas comuns, em uma reflexão sobre a existência, o isolamento e a loucura, ganha aspectos extremamente próximos ao representar algo de fantástico na relação de identificação e amor dos personagens com seus animais. Para João Porém e Jozu não há problema nisso, no entanto o embate com o estranhamento, zombaria e nojo ao seu redor revelam a condenação e tristeza da situação. Em dado momento, numa provocação de Guzuel com Jesuelda e Jozu, propondo uma relação sexual à três, Guzuel desafia que cada um fale algo muito desejado, mas que dê vergonha dizer na frente dos outros, a resposta de Jozu quebra instantaneamente a obscenidade cômica da cena e revela algo de melancólico e mórbido, Hilst (2003, p. 65 - 66):
E disse: ficar para sempre no fundo do poço seco com meu rato. Foi horrível ter dito isso porque o Guzuel ficou com muita raiva, a Jesuelda começou a chorar, o Guzuel gritou que não era bonito eu dizer isso porque isso que eu disse era muito triste, e ninguém mais podia pensar em meter depois de ouvir isso. Achei bastante singular que isso tirasse a vontade de meter e respondi que não tive a intenção de atrapalhar, e que eu tinha mesmo vergonha de dizer essa frase na frente de qualquer um. A Jesuelda continuava chorando e entre um soluço e outro dizia que nunca podia meter em paz com Guzuel porque vivia tendo pena de mim. Ela falou assim: essa tua cabeça virada de banda, o teu olho sempre molhado, e o teu rato.    
João Porém melancolicamente também se recusa a viver a vida como esperam dele, em sua única fala direta revela o profundo fatalismo e resignação “Esta não é a minha vez de viver…”, assim como nas locuções do narrador, que mais parecem fluxos-poéticos transbordados do autor “Infelicidade é questão de prefixo”, “viver é um rasgar-se e remendar-se”, “imóvel apaixonado: como a água, incolormente obediente” e “Ele fora ali a mente mestra. Mas, com ele não aprendiam, nada”. Em entrevista à Folha de São Paulo, Jacques Rancière, filósofo e crítico francês, reflete como a ficção poética de Guimarães Rosa subverte a hierarquia das temporalidades, que tradicionalmente define as histórias que merecem ser contadas ou não, na obra de Rosa, assim como no conto João Porém, o criador de perus o tempo dos acontecimentos sensíveis ganha o foco:
Aristóteles baseia a racionalidade ficcional sobre uma hierarquia entre dois tipos de temporalidade: há a crônica, que diz só como as coisas acontecem, uma depois outra, e a ficção poética, que diz como as coisas podem acontecer, de acordo com uma sequência de causas e efeitos a produzir e inverter expectativas.Ele restringe, dessa forma, a ficção a uma categoria privilegiada, aqueles que vivem no tempo da ação, oposto ao da reprodução, que é o das pessoas comuns.A revolução da ficção moderna foi rejeitar tal hierarquia  e se concentrar no momento qualquer. Este é o tempo dos eventos sensíveis sem hierarquia, que incluem a existência comum, tradicionalmente excluída da ficção. é o momento em que o ‘acontece’ está próximo do ‘nada acontece’.
No desfecho de O grande-pequeno Jozu o sentimento de isolamento e desamparo chegam ao limite do nojo e da loucura, o fluxo delirante confunde a história com sonho, e qualquer sentido possível com angústia, “Agora vou olhar a noite. E alguma coisa me diz que é a minha última noite, que o rato, o poço, são as únicas coisas que fazem parte de mim, e que os outros, de tudo o que sou - Jozu, rato, poço - terão eternamente apenas nojo. ” Hilst (2003, p.77).  Em um artigo sobre a narrativa hilstiana em Rútilo Nada, obra publicada em livro com título Rútilos e que reúne contos como O grande pequeno-Jozu, Weverson Dadalto também aborda o quanto é tênue os limites entre os gêneros e fala sobre a relação direta da angústia com esses fluxos poéticos (2010, p.134):
A recusa a render-se definitivamente ao poema, contudo, aponta para outro cuidado: o medo das formas e das armadilhas da linguagem, a certeza de que um muro não perde a validade apenas pelo afastamento dos seus limites, a precaução em não deixar a estética anestesiar a angústia. Afinal, não se admite um gênero, por mais sublime que se possa considerá-lo; lateja neste texto hilstiano a tentativa de ofender a soberania dos gêneros, de afirmar uma liberdade possível, embora com o risco de perder-se no caos. Desafiando a classificação genérica, Rútilo Nada desautoriza qualquer tipo de classificação: injúria a linguagem e suas formas; uma revolta, contudo, submissa, já que sabe que não pode subtrair-se à linguagem a não ser pela morte.
Por fim, pode-se concluir então, que esses pontos de contato são significativos nesses dois contos, tanto para a análise do tipo de linguagem poética usada na ficção, como para o tema, que coloca uma lupa de aumento nos mais insignificantes animais e personagens, levando-os ao campo dos sonhos e do imaginário popular de causos estranhos. Como melhor pode expressar Guimarães (apud LORENZ, 1994, p.47) “a linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que, como escritor, devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida.”



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS   

BERGAMÍN, José. “Cervantes”. Fronteras infernales de la poesía. Madrid: Taurus, 1959, p. 99-122.

DADALTO, Weverson. “Muros de linguagem em Rútilo Nada, de Hilda Hilst”. CONTEXTO - Revista Semestral do Programa de Pós-graduação em Letras da UFES, 2010, p. 134.

HILST, Hilda. Rútilos. São Paulo: Globo, 2003, p. 56 - 77.

LORENZ, G. Diálogo com Guimarães Rosa. Obras completas de João Guimarães Rosa Vol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p.47.

ROSA, Guimarães. Tutameia: terceiras estórias. 9º Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2009, p. 82 - 84.

RANCIÈRE, Jacques. “A escrita é invenção, não um processo de aplicação de ideias”. Folha de São Paulo - Ilustrada, acessada em 8 de dezembro de 2018, link:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2018/03/a-escrita-e-invencao-nao-um-processo-de-aplicacao-de-ideias-diz-jacques-ranciere.shtml?fbclid=IwAR110sPGDmvxU5P56raNIkH3GiDbXMuP_wEdVS2YJB9Cs7U0dNVgRiuPHbQ