31.10.18

amores

Paixão. Só dela cresce
o fôlego de um rumo.
Lupe Cotrim Garaude, poeta brasileira, 1933-70

...

me considero uma pessoa forte, mas a quantidade de vontade de tomar a vida com as próprias mãos e fazer o que é preciso, é diretamente proporcional a quantidade de lágrimas que sou capaz de produzir. não sei, mas parece que tem algum mecanismo que liga o meu coração às glândulas lacrimais, que é algo pra além do normal.
lembro a primeira vez que chorei intensamente sem conseguir parar numa sala de aula ainda bem menina, algo me fez sentir invadida e exposta, só deu tempo de enfiar a cabeça nos braços e ficar com a cara no escuro, molhada, aos soluços até que acabasse a aula, o mergulho naquele choro não me deixou pensar em mais nada, o meu ímpeto de dizer as últimas palavras tão bruscas e atropeladas poucos segundos antes disso foi tão forte, que todos em volta respeitaram aquele meu momento, depois os olhares eram de consideração, seguimos a diante nas relações que existiam ali com um tanto mais de respeito uns pelos outros.
dali em diante lembro de momentos assim quando a minha avó morreu, depois qdo meu tio se foi tão cedo, em brigas de adolescente com meus pais, qdo me dei conta que deveria levar adiante a minha gravidez sozinha, qdo o Caio chorava bebezinho e eu quase não tinha dormido e não sabia do que ele precisava, qdo meu pai ficou internado um tempo, depois de quase perder um pulmão, nas brigas ou desencontros de relacionamentos amorosos, nas noites depois de dias intensos de greves difíceis, na última cirurgia que o Caio fez, que por algum motivo a coagulação do sangue teve um tempo diferente e ele passou um dia e uma noite inteiros sangrando...
as vidas das pessoas são cheias de batalhas internas e externas com esse mundo frio que quase sempre não respeita nossas sensibilidades, nosso tempo, o caminho pra entender que a minha fragilidade e sensibilidade não significam fraqueza foi longo, e ainda é na verdade.
mas enfim, pode ser inútil, pode me tomar mais tempo no processo das coisas, mas sei que meu caminho pra enfrentar e não desistir das coisas passa por esses terrenos mais molhados, encharcados, por um mar profundo e revolto, que pode ficar denso e hostil por algum tempo, mas que liberta e impõe toda a sua natureza até que possa ser espuma suave e brilhante na beira da areia de novo.

...

ontem a noite tava conversando com o Caio, estávamos falando sobre a vida, a adolescência e eu comentei sobre um negócio da psicologia que li uma vez, que quando os filhos não "matam" metafóricamente os pais pode acontecer esses casos bizarros em que os filhos matam de verdade os pais... o Caio fez aquela cara meio de deboche, meio de tédio e falou dando risada "não precisa se preocupar, já te matei um milhão de vezes!"
fiquei meio chocada e achei muito engraçado ao mesmo tempo o jeito dele dizer isso super tranquilo, dei umas cócegas nele, um beijo e fomos dormir.
daí fiquei lembrando de um filme bom pra caramba que chama "eu matei minha mãe", é um filme lindo demais cheio de amor e fúria feito por um jovem diretor que só faz filme pesado, o Xavier Dolan, que é lindo tbm e lembra o Caio, desde a primeira vez que assisti já vi tanto da gente ali... a gente viu junto esse filme 
* Xavier Dolan fez o roteiro e dirigiu esse filme só com 20 anos, ganhou o Festival de Cannes em 2009. posso dizer com propriedade, além de mostrar com intensidade aquela relação de amor e ódio entre ele e a mãe, tem um retrato ali de uma maternidade solitária que é também uma declaração de amor e reconhecimento. a atriz que faz o papel de Chantal, a mãe, Anne Dorval, é deslumbrante em cada detalhe.
a primeira vez que assisti, ainda morando na casa da minha mãe, me vi mais como filha. da segunda vez, um tempo depois, já me identifiquei bem mais com a mãe.
"Eu amo a minha mãe, se alguém fizesse mal a ela eu seria capaz de matar", "não tenho capacidade de amá-la, nem a capacidade de parar de amar"
num esforço desajeitado e sem tamanho o filho diz “mãe te amo”, as palavras saem tão duras que a mãe se assusta, “eu também filho”, ele termina já fugindo “só para você não esquecer”
e existe tanto amor, e tanta raiva, e ele “E se eu morresse hoje”, ela “Eu morreria amanhã”.


27.7.18

rascunho


tem uma coisa no canto dos seus olhos quando sorri. é que não é um sorriso qualquer, ligeiro, é suculento (rs!), de fazer brincadeira sentindo por dentro umas cócegas no coração, na buceta, nos abraços e nas dobrinhas. do peso do corpo solto no colchão e da cabeça envolvida nos braços, numa dança amarrada de pernas e quadris... cê conta uma coisa séria e outra, a gente emenda uma piada e uma música brega, vira gargalhada, vira corpo que se enverga e encosta mais um tanto as coxas. dá pra ficar horas num mergulho desse, olhando as bolhas se formando e estourando no ar, de respiração, de ideia, de afago.

um botão, outro e um alfinete, mordida forte sob a meia calça, surpreende a mordida suave e molhada na pele. que pele é essa que quando se encosta muda a temperatura do corpo inteiro, muda os sons em volta e a quantidade de saliva num beijo.

25.7.18

diário-intervalo


perdi o caminho das palavras em algum ponto, na aceleração dos tempos, no exagero das imagens, nessa coisa de tentar acompanhar tudo. não consigo escolher, essa sempre foi uma dificuldade na verdade, a ansiedade de estar em todo lugar e de não estar em nada, de ir se fechando de tristeza ou cansaço, ou de não ver sentido mesmo.

essa coisa da falta de sentido, dá uma volta, aperta e retorna. tem esse tempo do sentido das coisas. o tempo de ir tentando entender. de ver como funciona, como a gente se sente e como sentem as pessoas em volta. depois acaba.

parece que não volta, as vezes volta. nunca se sabe a duração.

não quero divagar, não quero romantizar esse tempo esvaziado de experiência entre uma obrigação e outra, que tanta gente nem tem, nem isso, e que pra maior parte isso só vai se espremendo, moendo e virando pó. mas essa coisa de ir e ir mais, esticar, tensionar, só não tá mais funcionando. a cabeça já não ia, o corpo agora não vai, a vontade aperta as entranhas, os lençóis e os minutos do relógio, que já não valem 60 segundos, que já não existem de forma linear e vão se chocando em blocos de tempo. de tempo em tempo algo se perde e quebra nas ligações mais superficiais.

nessas ligações superficiais.

alguma coisa ativa ou desativa essa ligação, varia o dia e a constância. talvez a falta de sentido esteja em deparar essas variações com palavras estáticas. as palavras aceitam tudo, só não aceitam quem não as usem com verdade, uma verdade dissimulada, uma crença, uma crença disfarçada de espírito, um movimento que quer quase chegar no vento, nas ondas, no azul mais marinho, no azul da meia noite.

esse azul não aceita palavra.

16.7.18

desenlaça



desenlaça a alça
solta os ombros
roça o corpo
feito pele
feito pelo
respira o cheiro
humedece o ar
enche o espaço
com tuas vontades
que minha saudade
tá me derretendo
que meu tempo
tá se desfazendo
em calor, frio
água e vento

23.4.18

vento


ilustração da ju  


ter paciência e dormir
fechar os olhos, dar tempo ao sono
tem vontade, sonho e precisão, tem pressa, mas entre os dias sempre cabe uma noite
entre os afazeres, o corpo e o espírito, tudo aperta e há lágrimas por sair, presas
paciência com a vida, com o calendário e com tudo que não cabe, não conta, não alcança
saber e fazer, mas é necessário existir
sentir o ar espesso e a pele, as saudades e as angústias, cada espaço vazio e cheio
olhar fundo e dentro pra um horizonte alaranjado

deixar um pouco o quarto e as salas uma seguida da outra, o cimento frio, colocar os pés no chão de outros lugares

musgos na pedra, noite de cigarras, balanço de madeira e vento

queria estar no tempo e som desse outro lugar, aqui


18.4.18

fragmentos





aquele que se ajoelha diante do fato consumado não é capaz de enfrentar o futuro
Leon Trotsky

um livro deve servir como um machado para quebrar o mar gelado em nosso interior
Kafka

fuimos las que no salíamos en los periódicos, estábamos entre líneas, en el espacio en blanco entre las historias (...) ya no vivimos en los márgenes de las historias, somos las historias, somos las líneas y las escribimos nosotras mismas
 Margaret Atwood


só naquela noite quis ser a última a ir embora, sentir a pausa do tempo vazio, do ar fresco depois de um dia de fazer queimar o asfalto.
as árvores esverdeadas só nas pontas tinham suas bases escuras, a luz de um farol ou outro refletia nos troncos.
uma noite assim não é feita pro meio de uma semana, pra uma vida de mulher.
um tempo vazio e fresco não é permitido numa noite e numa vida assim.
a gente se engana e pensa que pode, se distrai e confunde a ordem.
da casa pro trabalho, do ônibus pro portão, da chave na mão pro corredor.
tem noite que a gente insiste, se desfaz e diz que pode.
depois o ônibus demora a passar e lembra que o sono vai ser mais curto.
depois o sol se apressa em raiar e aquece nossas olheiras fundas.
mas tem noite que é fresca e não tem como deixar se perder.
a gente não sonha pra poder viver...

18.10


reencontrar o caminho da poesia
de soltar atravessado
atropelado
tudo e tanto que transborda
no corpo
num beijo quase sem fôlego
nas marcas que ficam na pele
no peito cheio de amor
na angústia de não conseguir dizer
abrir as costelas
as entranhas
os punhos, as mãos
o olhar baixo e a voz tremida
sentir agudo cada som que sai
e uma respiração quente
espessa
que nem é mais feita de ar
é suor
sou eu
esparramada em você

20.10


llegada

ar fresco
el español uruguayo al fondo
sente o peso do corpo se acomodar na rede
nas fibras estendidas de uma parede de tijolos viejos
até o tronco de um enramado de árvores
tem poucas nuvens no céu
quase não parece um céu de cidade
numa promessa de mais estrelas hoje
sol, calor e azul amanhã
a gente vai pra outros lugares
e se confunde
o que precisávamos mesmo
o que é essencial
o sol se põe devagar
a brisa logo esfria
os pés vão sumindo na areia
e reaparecendo nas ondas
não sei fazer contas de câmbio nem falar espanhol
mas tem uma linguagem das coisas
dos olhares...
a gente escuta mais quando está longe

16.01


to com aquele choro preso na garganta que faz doer tudo por dentro.
lembro dos passos rápidos na tua frente tentando esconder minha tristeza, imagino qual era a minha forma por trás, tenho medo de ser deformada e feia, torta e estranha do cansaço e do tempo. me dá vergonha pensar nos seus olhos em mim e também de dar importância pra isso. tudo que eu queria era sumir, não querer e não esperar nada.

o desencontro faz ficar concreta toda a pressa e toda a pressão. queria poder andar distraidamente, qualquer coisa a gente se vê, dizer te amo e só sentir. mas nunca deixa de ter tudo em volta dizendo como devo ser e me sentir. mostrando o frio de uma solidão que é só minha, minha e daquela menina que mora em mim.

a esteira deu vertigem, engoli a saliva pesada por três vezes apertando o choro.

não sou poeta, minha memória só guarda o que seria melhor esquecer, não sei fazer almoço de domingo. tomei cerveja pra te esperar, mas o gosto do malte estava amargo e só fiquei com sono e mau humor. as notícias ruins chegaram por celular antes de você, não sei o que pensar, só que bicho acaba sendo uma extensão da gente e a gente morre um tanto vendo aquela vida tão pequena começando a se esvair.

e agora fico lembrando de você naquela noite tirando as minhas botas e a roupa na beirada da cama, me olhando com um sorriso brilhante e bonito. seu braço em volta do meu quadril e o nosso corpo se encaixando de todas as formas, quase preenchendo todo o vazio. tava meio frio e consegui ficar no cobertor e dormir profundamente com você.

essa noite foi vazia e tive pesadelo o tempo todo, nem sei se era sono mesmo ou pensamento. o desequilíbrio dos dias desnorteiam a minha necessidade de alguma segurança. to aqui pensando ainda em como fazer os sete dias dessa semana terem sentido. porque me enfiei no que podia e no que não podia e ainda sinto o tempo fragmentado e roubado por tudo que está em volta, e de certa forma, ainda está alheio ao que importa.

2.04


queria escrever versos pra te recitar
desenhar palavras
fazer corpo das ideias
dos sonhos
e das brisas
te ler num sarau
deixar a voz bem rouca
lembrar do gosto
flertar com a sua boca 
queria ser uma mulher
só uma mulher
sem esse cansaço pesado nas costas
sem culpa
sem marca
ou bagagem
queria ter essas palavras improvisadas
só porque deu vontade
só porque o tempo veio
queria ser esse tempo
que escorre
e discorre 
entre a casa e o trabalho
com uma parada no bar
e uma cerveja
queria ser mulher
queria ser essa mulher que é livre
que não tem medo
que pode confiar no amor
que não espera sempre o pior
queria...
ser qualquer outra forma
outro lugar
um avesso do corpo
o reverso 
o todo
e um nada
pra poder só sentir

28.02

15.3.18

sobre a noite que perdemos Marielle


Pão e Rosas


sinto enjoo
meu corpo dói
o desgaste é físico
da pressão de todos os dias
mas tem uma camada diferente no ar
essa película fina
uma máscara que não se sustenta
pra que serve a luta e a vida afinal?
pra amanhã?
a vida de uma mulher
negra
mãe
militante
feminista
precisa do agora
do hoje
do sol
das ruas
das rodas de mulheres
do despertar pra vida política
do grito na noite
contra o genocídio do povo negro
no colo e na conversa cúmplice
com a filha de 17 anos
não tem volta
não tem perdão
a vida das mulheres negras importam
o sangue escorre pelo chão
9 tiros
4 na cabeça
execução
todo asfalto ocupado nesse dia
é luta é vida é choro

alguma coisa precisa ser feita
alguma coisa dentro da gente
e fora

junta ato
recolhe as forças
cata os menino na rua
PM, intervenção federal
não tem água de março
tem calor, tem mormaço
estalo no tambor

muita gente
vela
cigarro
e uma noite

uma militante apaixonada
uma mãe emocionada
uma negra inconformada
e uma observadora tentando encontrar a voz disso tudo


26.1.18

impressões sobre a greve

texto que escrevi pro movimento Nossa Classe durante a greve na USP de 2014, momento importante pra mim, que me despertou e ganhou pra vida política.

tinha um monte de angústia muito forte, que de certa forma me sufocavam e acabavam me deixando doente sem enxergar um sentido pra tudo que acontecia. me dá uma coisa agora no peito, sendo quem sou hoje, encontrar por essas palavras a pessoa que era naquele momento. tem uma ingenuidade e uma força nessas impressões, me orgulho bastante delas.

de 6 de julho de 2014

Quando participamos de uma mobilização a compreensão sobre ela muda, mais ainda se nos sentimos parte de cada decisão e ação tomada. Essa tem sido a impressão entre todos os trabalhadores que tenho conversado durante as atividades e assembleias de greve. Muitas pessoas que antes tinham receio de participar, agora valorizam a importância desse momento de profundas transformações. Todos querem sim voltar aos seus postos e retomar seu trabalho, mas não sem antes serem ouvidos, pois o que faz dessa greve tão grande e forte, é a legitimidade de todas as reivindicações.

ato da USP até a Paulista, Caio tava junto

Acabo lembrando de alguns projetos que participei nos meus anos de trabalho na Prefeitura, tentativas de repensar, de modo participativo, o uso do espaço público do campus, priorizando as relações humanas, o ensino, a pesquisa e a extensão universitária. Mesmo com alguns avanços, me frustrei bastante em constatar como a USP é resistente a mudanças, não se beneficiando do conhecimento que ela mesma cria. Ouvi professores, funcionários, estudantes e agentes da sociedade com vontade de fazer parte da construção de uma universidade pública melhor, mais justa e aberta para todos, sendo esmagados por uma estrutura de poder engessada e egoísta.

No cotidiano, as dificuldades são tantas, que não existe uma pessoa que já não tenha se sentido desrespeitada. Como funcionário, professor ou estudante pelo autoritarismo hierárquico, ou como cidadão, por acompanhar de perto como o dinheiro público é gasto desgovernadamente pelas vaidades momentâneas no poder. As contas não batem e os discursos dos dirigentes não convencem.

reunião da Secretaria de Mulheres durante a greve

Conseguir parar e refletir como outra lógica de funcionamento pode existir, tem sido um dos grandes ganhos dessa greve. Uma lógica que questiona a serviço de quem estamos trabalhando, o que significam os cortes de verba, a falta de reajuste e as terceirizações, a precariedade do nosso trabalho serve a quem afinal?

É por isso, que pelos trabalhadores da saúde, com péssimas condições de trabalho e de atendimento digno à população, estamos em greve. Por todos os trabalhadores das áreas operacionais da Prefeitura e de outras Unidades, com condições de trabalho sucateadas em favorecimento das terceirizações, estamos em greve. Por todas as cozinheiras e colegas de trabalho da Superintendência de Assistência Social, que sofrem com doenças causadas pelo esforço repetitivo, sem condições para exercer suas atividades de maneira saudável, estamos em greve. Por cada trabalhador do setor acadêmico, técnico, financeiro ou administrativo, que não conseguiu impedir uma decisão arbitrária ou mal planejada, estamos em greve. Pela transparência nas contas e na gestão, estamos em greve. Pelo reajuste salarial, contra demissões e processos políticos, pelo aumento da porcentagem do ICMS e justo repasse das verbas para a educação, estamos em greve. Pela abertura das negociações e liberdade de Fábio Hideki, ativista em diversas causas, funcionário da USP, preso político, estamos em greve.

com Brandão e Amanda na festa de comemoração no final da greve

E assim, aprendemos participando, que estar em greve é estar em movimento, é estar presente todos os dias, conhecendo as histórias de luta de cada trabalhador. Entendemos que fazer greve dá o maior trabalho, pois é um processo de aprendizado contínuo e de ressignificação do nosso papel. É o impulso para que cada indivíduo se aproprie da sua força de trabalho, enxergando seu verdadeiro valor e, mais que tudo, se enxergando como um coletivo capaz de propor mudanças e de ser ouvido.

de Yuna Ribeiro
funcionária da Prefeitura do Campus da Capital/USP