28.10.13

deixo em forma de segredo...




paro, penso e logo sinto uma coisa boa
coisa de deixar sorriso e sensação de presente

nos sonhos malucos mato as saudades
ainda dividimos o quarto

cheiro a pele e o travesseiro
pra lembrar e sentir um pouco mais

o dia amanhece devagar
e tenho toda a calma do mundo pra devanear com você

deixo em forma de segredo minhas declarações
na sua porta, no pé do ouvido
num beijo


ps. a música é inspiração da Suh Mattos.


21.10.13

Alcoólicas (trechos)




                       I

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.

                    II

Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo tempo de conquista. Langor e sofrimento
Vão se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussurras: ah, a vida é líquida.


                    III


Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estilosa galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaivagem
se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.

Ah, o todo se dignifica quando a vida é líquida


                     IX

Se um dia te afastares de mim, Vida — o que não creio
Porque algumas intensidades têm a parecença da bebida —
Bebe por mim paixão e turbulência, caminha
Onde houver uvas e papoulas negras (inventa-as)
Recorda-me, Vida: passeia meu casaco, deita-te
Com aquele que sem mim há de sentir um prolongado
                                                                    vazio.
Empresta-lhe meu coturno e meu casaco rosso:
                                                        compreenderá
O porquê de buscar conhecimento na embriaguês da via
                                                               manifesta.
Pervaga. Deita-te comigo. Apreende a experiência lésbica:
O êxtase de te deitares contigo. Beba.
Estilhaça a tua própria medida.

Hilda Hilst




20.10.13

o querer e o sentir

                                              

                                                    "Tenho tanta vontade de ser corriqueira e um pouco vulgar e dizer: a esperança é a última que morre."

Clarice Lispector

e então você percebe que as pessoas vem e vão. deve ser assim mesmo. talvez esse seja o movimento universal, a impermanência, o desapego, a despedida. aquela pessoa que dormiu na cama ao lado, que dividiu tanto, quase tudo, foi sua ligação com a vida real quando todo resto parecia tão subjetivo, aquela pessoa que foi a voz pra te acalmar nos momentos difíceis, está cada vez mais longe.

não temos mais as madrugadas em comum, não vamos inventar sonho ou projeto algum e o tempo para análises e loucuras sufocou até acabar.

minha incapacidade em me relacionar talvez só tenha tornado isso inevitável, restrições e catalogações têm prazo de validade. experimentando o ciúmes e o egoísmo mais infantil te afastei. agora, me resta deixar o espaço entre nós existir, concreto.

já tinha sentido isso antes, um sentimento derradeiro e dolorido, pensava que era exagero, mas parece que tudo acontece para nos preparar, encaramos uma solidão e depois outra, sentimos uma falta, um buraco, um vazio. e um dia estamos cercados apenas pelos nossos pensamentos, não temos mais os ecos, os espelhos, as redes de segurança, as caixas de memórias. e mesmo assim é preciso continuar e tomar as decisões necessárias.

talvez amadurecer seja mesmo ser inteira, não se dividindo tanto e nem exigindo tanto dos outros, talvez isso seja condição, aprender a deixar de procurar, pedir, lembrar e chamar... na esperança de que o caminho inverso aconteça, uma hora ou outra, antes que seja tarde ou distante demais.

tenho esse jeito desajeitado e na busca por algum equilíbrio, nessa nova forma de estar no mundo parece que não vai sobrar muito. falta. transborda.

não quero mais cartas de reconciliação. nem remendos pra disfarçar os recortes. se tiver que acontecer que seja mesmo por acaso. o acaso no fim das contas é o deus da energia conspiradora e cósmica. incontestável e genioso.

quero de verdade aceitar o que a vida me dá ou tira, ser assim corriqueira, esperançosa e leve. e só acreditar que tudo vai ficar bem.

a distância entre o querer e o sentir é incoerente.




13.10.13

instante e solta


Francesca Woodman
 
me confundo nos braços
na pele que encosta suave e quente
deslizo fácil
encontro abrigo
é um aconchego instantâneo
só existe o corpo e a sensação em volta
o tempo é instante 

aos poucos me apego aos gestos
olho um pouco mais pra ver o jeito do sorriso
dos olhos
as linhas das mãos

quase perco o medo
confio
exagero
esqueço

quando o espaço volta
já perdi a coragem
me encho de dúvidas
quero me proteger

distraio o medo com devaneios
brinco de ser instante
e solta


7.10.13

signs


desenho de Alexandra Breda
 
inclina o rosto e respira
fecha os olhos
inspira
profundamente
sempre
serena
crua

puxa o ar
o ardor
o amor
suave vida
vá embora
e volte

expira
enrubesce a face
queimando lembranças
lembra do dia
do momento presente
da conexão
do desconhecido

esquece
do medo
e do desamparo

troque algumas palavras num jogo qualquer
seja você mesma, simples e fragmentada
acaricie a pele suavemente
do rosto
do corpo
sobre os sinais

brinque com o tempo como uma criança
brinque de sentir pela primeira vez o toque
pincéis suaves
cores aquareladas

deixe a forma existir
sair
e se tornar essência


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nota de rodapé

esse desenho tão bonito que aparece por aqui, preenchendo com cores e traços sutis, estendendo o alcance das minhas palavras e ligando uma história com outra, é resultado de uma dessas surpresas boas da vida, que trazem um sorriso largo e uma sensação gostosa de que pode ser simples.

essa história já tem um tempinho, começou sem percebermos, uma palavra, uma resposta, uma troca e de repente passamos a conhecer um pouco mais uma da outra. as vezes até sinto como se fosse um reflexo, que por lá do outro lado, em algum lugar de Portugal, se revela.

e por isso é com muita alegria que trago aqui para o meu espaço de sonhos e devaneios um pouquinho da presença tão especial e serena da Alexandra Breda. boas vindas, palavras e desenhos!