4.12.19

A marvada carne

Resenha do filme A Marvada Carne (1985) de André Klotzel, com Fernanda Torres, Adilson Barros e Regina Casé, um clássico, ganhou vários prêmios, inclusive de melhor filme no Festival de Gramado. Fiz pra aula de Cultura e Sociedade na FATEC, Profa. Virgínia Namur, em 2008.

"... o homem, meio caipira, meio desprevenido, cercado de fileiras e prateleiras coloridas, mais que comida, mais que objeto de desejo, aproveita a chance, rouba um pedaço de filé e corre, a carne do pé contra o concreto e a "marvada carne" contra o peito."
           (epígrafe minha mesmo, em 2008 era mais ousada como Cruz e Sousa rs)



            Lá dos cafundós do interior sai Nhô Quim, típico caipira, numa trajetória através de seu tempo, suas crenças, culturas e lendas para se deparar com o concreto, um choque cultural que o absorve de tal forma, encaixando (agora ele é consumidor) e marginalizando, passa a ser o suburbano da favela. A carne na grelha do churrasco e a paisagem limitada pelas lajes.

          Da cultura popular que o telespectador resiste em abandonar, pois encanta e diverte com o resgate do folclore e das raízes tão peculiares e ao mesmo tempo líricos. A escassez da carne, a pele envelhecida pelo sol, os horizontes, o mato, o pé no chão sujo de terra, som de cigarras e coaxar de sapos, o jeito de falar "conversa foi coisa que nunca fartou a esse fio de meu pai", tiro de espingarda em curupira, moça Carula donzela da roça, que discute com Santo Antônio, que nada pelada no rio que nunca mais vai dar peixe e que bebe do mesmo copo pra descobrir todos os segredos do pretendente, destaque para a forma de religião simples, bruta, pouco rebuscada, sempre permeada de superstições, lendas e anedotas. O fogão à lenha, arroz, feijão e abóbora em prato de barro e marmita na trouxinha de pano, toda a comunidade ajudando a preencher de barro a estrutura de madeira das casas, o plantio semente por semente, enxada, festa em volta da fogueira de São João, São Roque e o casório fugido no cartório da cidade pequena (casamento esse, que o pai Nhô Totó não podia aprovar, mas que depois de realizado foi de muito bom grado).

          Os dois caipiras casados, dois filhos e nada da carne de boi, foi quando Nhô Quim resolve confrontar o diabo na busca definitiva pra mudar de vida. Negocia uma galinha preta com uma mocinha perdida num matagal e resiste por pouco a tentação, quase perdendo a galinha e o dinheiro pra um diabo que se revela muito bem paramentado, com cinta-liga preta, salto alto, rabo peludo, maquiagem carregada e voz distorcida.

          Com o dinheiro, Nhô Quim pega um trem rumo à cidade grande para cumprir seu destino, e a cultura popular se depara com a cultura de massa na primeira vitrine, no encontro com o boi, muitos bois, brilhantes e ofuscantes nas telas das televisões empilhadas diante dos olhos deslumbrados. Barulho de carros, anda perdido pelas ruas, passa por um açougue, um caminhão de carnes, a abundancia que alimenta os sonhos e distancia a realidade. Para em frente de uma loja de sapatos, numa fotografia da poesia-conflito, do sonho, do desejo e da desigualdade, sentado na calçada com os pés descalços, tão perto daquilo que não pode ter.

          No saqueamento de um supermercado, fica datada a mudança, e o homem, meio caipira, meio desprevenido, cercado de fileiras e prateleiras coloridas, mais que comida, mais que objeto de desejo, aproveita a chance, rouba um pedaço de filé e corre, a carne do pé contra o concreto e a "marvada carne" contra o peito.



Nenhum comentário:

Postar um comentário