4.12.19

DOCUMENTÁRIO ENCONTRO COM MILTON SANTOS OU O MUNDO GLOBAL VISTO DO LADO DE CÁ

Trabalho apresentado para disciplina de Teoria da Cultura do
Prof. Dennis de Oliveira no curso Gestão de Projetos Culturais em 2012

“É preciso explicar porque o mundo de hoje, que é horrível, é apenas um momento do longo desenvolvimento histórico e que a esperança sempre foi uma das forças dominantes das revoluções e das insurreições e eu ainda sinto a esperança como minha concepção de futuro.” (SARTRE, Jean Paul, 1963, Prefácio de “Os condenados da Terra”, de Frantz Fanon)



O documentário Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá, com direção de Silvio Tendler, 2006, é uma proposta admirável, ambiciosa e brava de encarar uma leitura da conjuntura social na era da globalização, para além do mercado, da economia e do sistema vigente. Uma análise sincera e audaciosa dos tipos de humanidade, de ética e de problemas provenientes do modo operante da globalização. Problemas que são encarados como uma realidade construída e com perspectiva otimista de enfrentamento e reconstrução.

Um filme realizado com poucos recursos, as entrevistas aconteceram com o apoio de um único assistente e uma câmera digital de tecnologia defasada. Depois da entrevista com Milton Santos em 2001, o processo de filmagem e edição durou cinco anos. Como conta Silvio Tendler “como quase todos os meus filmes, é um quebra-cabeça. Não tento simplificar o processo de produção, nem tenho pretensão de inovar na linguagem cinematográfica. O objetivo é me comunicar com os espectadores”.

O documentário é constituído pela conversa com Milton Santos gravada em 4 de janeiro de 2001, poucos meses antes de sua morte, e por trechos de seus aclamados discursos. Recortes de entrevistas e discursos de José Saramago, Eduardo Galeano, Celso Amorim, líderes e ativistas de movimentos populares, do polêmico e intragável diretor geral do Banco Mundial em 2003, Peter Woicke, entre outros, complementam e ilustram a discussão proposta. 

Além das falas, narrativas e imagens jornalísticas, uma série de recursos dinâmicos e gráficos são usados para facilitar o entendimento do expectador e tornar concreto o que muitas vezes parece, propositadamente, confuso e nebuloso demais para se formar uma opinião. O fio condutor escolhido para o documentário é claro e não deixa dúvidas, muita coisa aconteceu na História e continua acontecendo, passando por cima de resistências e de questionamentos sem respostas. A ética dominante é a tramada por um punhado de empresas, que como diz Milton Santos, decidiram fazer desse mundo um mundo perverso.

O documentário passa por momentos históricos como o Consenso de Washington de 1989, com seu conjunto de medidas recomendadas por economistas para promover o ajustamento macroeconômico, que surtiu efeitos violentos com levantes populares contra as privatizações no Equador, na Bolívia e na Argentina. O 3º Fórum Mundial da Água em Kioto, no Japão, 2003, em que acima de toda a manifestação popular em defesa da água como um bem comum global e que precisa ser defendido pelo Estado, prevalece a posição das transnacionais da água como um bem econômico e que precisa ter um preço no mercado. O Fórum mundial econômico em Davos, 2006, com seus fundos solidários para anestesiar a pobreza e não encarar profundamente a questão da desigualdade. 

Mostra as formas de exploração da mão de obra do 3º Mundo, como a fragmentação do território e o frouxo controle do Estado, permitem relações de trabalho sem responsabilidade social e moral. Mostra o movimento dos imigrantes que desistindo de lutar por melhores condições de vida em seus territórios, preferem enfrentar a intolerância e a exploração em terras estrangeiras, nas quais estão fadados a viver à margem. 

Um assunto com participação importante no documentário é o papel da mídia. Segundo Milton Santos, a mídia atua como intermediária entre a sociedade e um pequeno número de agências internacionais da informação, estreitamente ligadas ao mundo da produção material e das finanças. Essa estreita ligação controla de maneira eficaz a interpretação do que está se passando no mundo, tanto que esse controle se torna evidente quando vemos a repetição servil das mesmas fotografias e manchetes nos mais diversos veículos de informação.

Por outro lado, a tecnologia, a internet, a rede de informações acessíveis e a apropriação da população da cultura de massa, torna possível outro fluxo de informações, alternativo. Passam a existir maneiras de mostrar o que a mídia não está disposta ou não tem interesse em mostrar. As camadas “de baixo” ganham voz e ferramentas para divulgar suas culturas, suas questões, a busca por sua identidade. A comunicação direta pode ser um meio de exercer a liberdade e a cidadania.

Os trechos de discursos são os momentos mais fortes, tanto dos teóricos, como dos líderes e ativistas populares, o calor e a força do direito legítimo de se manifestar transpassam a tela, o momento de falar e ser ouvido. O momento de escancarar a teoria e a realidade com o peso de quem nasceu negro, índio, pobre, colonizado. E ousou ser cidadão, político, ativo e intelectual, não só dos livros, mas da vida e da cultura, de quem vive e estuda as limitações do ser humano e mesmo assim escolhe acreditar na capacidade humana de lutar, transformar, resistir e existir. Como numa fala de Milton Santos “descolonizar é olhar o mundo com os próprios olhos, pensá-lo de um ponto de vista próprio. O centro do mundo está em todo lugar: o mundo é o que se vê de onde se está”.

Mais do que didático, oportuno e necessário, o documentário transmite a urgência dos acontecimentos, o equívoco do ruído da era da informação, a lógica absurda a que cedemos a cada dia, a que escolhemos em cada ação. Resistir ou ceder, e que como brasileiros colonizados, ainda cedemos muito mais do que resistimos. 

Conclusão

“El alto de pé, nunca de rodillas”
(lema do povo boliviano)

Enxergar com exatidão os atores desse jogo de poder mundial deixa claro que só existe muita riqueza porque existe extrema pobreza. E isso, por mais óbvio que seja, precisa ser desenhado e provado. Mais que isso, para vencer a insensibilidade, o estado anestesiado, causado pela enxurrada de estímulos consumistas desnorteadores que recebemos da mídia a todo momento, precisamos enxergar nitidamente e ouvir a força do grito, do desespero, do choro, da desgraça, para sentir o rosto arder, o coração humano pulsar e acordar. Fica claro o quanto é preciso colocar a cara a tapa, não ter medo de participar e de errar.

Olhar o mundo e questionar seu sentido, duvidar de sua lógica, sentir empaticamente o discurso do outro e querer unir sua força a dele, resistência. Tudo em algum momento acontece de maneira simples e escolhemos ceder ou resistir. E ceder pode parecer tão mais fácil, e pode dar menos trabalho, isso é ilusão, é propaganda descaradamente enganosa. Não negar a complexidade e a seriedade de cada escolha, no âmbito pessoal, social, político, coletivo, é determinante para a realidade em que vivemos hoje e para o futuro que estamos construindo agora. A perversidade da globalização não é uma escolha nossa.




Referências bibliográficas

TENDLER, Silvio. “Encontro com Milton Santos ou o mundo global visto do lado de cá”. Documentário. Rio de Janeiro: Produções Cinematográficas Caliban, 2006.

Geografia para todos, http://www.geografiaparatodos.com.br/index.php?pag=sl199 - data de acesso 22/03/2012.

OLIVEIRA, Dennis de. “Ideologia e/ou cultura: o mal estar da contemporaneidade”. Revista Altejor, Ano 01, Volume 01, Edição 00, 2009. 




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