11.12.19

COMO VEIAS FINAS NA TERRA: dualidade e contraposição nas paisagens e na representação do feminino

Trabalho apresentado para disciplina Literaturas Africanas de Língua Portuguesa I, da Letras, para a Professora Doutora Tania Celestino de Macêdo, em 2019.

Thayna Rodrigues Silva
Yuna Ribeiro Conceição



“Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim.”
TAVARES, 2011, p. 234

A poesia de COMO VEIAS FINAS NA TERRA fala de tensões opostas que convivem na realidade de Angola, em confronto e emaranhado os fios do verso puxam significados da tradição e rasgam espaço para o novo, numa prosa poética Paula Tavares conversa intimamente com a mulher angolana, da lama, da pedra, do ritual, ao florescer da buganvília e do jacarandá. Carmen Lucia Tindó Secco, no posfácio de AMARGOS COMO OS FRUTOS, poesia reunida, comenta sobre essa tensão:
É uma poesia que carrega dentro de si contradições inúmeras, complexidades enormes, fazendo interagirem, em tensão, os sentidos telúricos e o espólio advindo de culturas que, através dos séculos, habitaram Angola; tradição e modernidade; a aridez de dunas junto às fronteiras com a Namíbia e a liquidez de rios e lagos angolanos; provérbios locais e legados culturais trazidos pela colonização portuguesa; mitos e cantos coletivos mumuílas, originários da região da Huíla, no sudoeste angolano, e heranças de epopeias homéricas – tudo isso contracena com o olhar e os afetos  do sujeito lírico, com sua solidão de poeta. (SECCO, 2011, p. 263)
Franz Fanon, no livro OS CONDENADOS DA TERRA, elucida a violência da colonização e do colonizador, em dado trecho fala sobre os sonhos do colonizado:
A primeira coisa que o indígena aprende é a ficar no seu lugar, não ultrapassar limites. Por isso é que os sonhos do indígena são sonhos musculares, sonhos de ação, sonhos agressivos. Eu sonho que dou um salto, que nado, que corro, que subo. Sonho que estou na gargalhada, que transponho o rio com uma pernada, que sou perseguido por bandos de veículos que não me pegam nunca. Durante a colonização, o colonizado não cessa de se libertar entre nove horas da noite e seis horas da manhã”. (FANON, 1968, p. 39)
O excerto, que por sua beleza e força expressa uma potência poética, pode ser aproximado da intenção encontrada no lirismo de Paula Tavares. O processo de descolonização não encerrou o sofrimento e a exploração dos homens, a violência da escravidão e do trabalho compulsório, que na Angola vigorou até 1961, reverbera marcas profundas até os dias de hoje, para as mulheres, que sofrem dupla subjugação, a busca pela liberdade material e subjetiva precisa ainda mais do impulso dos sonhos. Na poesia da autora movimentam-se sonhos agressivos de sofrimentos e prazeres, seu fazer poético e suas imagens possuem o fluxo e o alcance do universo onírico, sem os limites da realidade são ressignificadas as paisagens terrenas e os corpos lançam-se geograficamente redesenhando suas memórias e sua história.

Neste trabalho a análise está concentrada nos poemas iniciais, ENTRE LUZ E SOMBRA e OS NOVOS CADERNOS DE FABRO, representativos dos elementos presentes em todo o livro, com destaque para a contraposição marcada entre luz e sombra, o novo e a tradição, em escrita livre e de tom confessional, a atualidade latente de seus versos revelam a crueldade e a delicadeza da representação feminina na literatura angolana.

ENTRE LUZ E SOMBRA

Este poema pode ser analisado como um ritual de passagem. Na primeira estrofe, há a  principal imagem que se repete pelo poema, a da sombra que desliza por detrás dos vimes, esta imagem antecipa o conteúdo do poema, a ideia da luz e da sombra como coisas indissociáveis, a noção de um poema fluido, cheio de gradações, em que é possível sentir a sensação de algo que está em suspensão, por isso, o emprego do verbo deslizar indica e acentua esse sentimento de fluidez.

Os versos: “celebra-se a hora/ Os mortos abandonam os vivos/ para viver em paz”. Denotam este ritual de passagem. É chegada a hora em que os mortos deixam os vivos para viverem em paz, este momento requer cuidados, preparação, por isto, são convocadas as mães para realizarem os rituais necessários: “Acendo com as mãos das mães / a candeia antiga de óleo de palma”. As matriarcas cumprem um papel importantíssimo neste ritual, elas têm a função de provar a comida e velar as oferendas, como nos versos: “Enquanto as mulheres dos clãs de cima / provam a comida da noite / e velam pelo fogo das oferendas.” Essa imagem do ‘velar pelo fogo das oferendas’ pode ser vista como redundante, pois o verbo ‘velar’ pode ter o significado de permanecer aceso. Indicando assim, quão importante foi a descoberta do fogo para a sociedade, que fez ser possível alimentar-se. Velar o fogo das oferendas então é valorizar a possibilidade de utilizar dos recursos da natureza para suprir suas necessidades físicas e fazer uso disto para louvar a vida, sendo que o próprio uso da palavra oferenda indica este sentido ritualístico. Sobre a importância da figura das mulheres na obra de Ana Paula Tavares, escreve Chaves:
Conforme o poema, as palavras são como a vida das mulheres, interligadas, mesmo geograficamente dispersas. Na poesia de Paula, diluem-se os mitos vazios de um feminismo retórico ou de um tradicionalismo exotizante para dar lugar à visão de um grupo que intervém na sociedade em que está inserido. Dessa maneira, Ana Paula não fala pelas mulheres de sua terra ou de outras, fala com elas, abre-lhes o lugar que elas já ocupam. É essa uma das maneiras de denunciar uma das muitas injustiças dos tempos que não param de correr. (CHAVES, 2005, p.112)

O poema é circundado o tempo todo pelas imagens de sombra e de luz, que refletem a principal noção transmitida pelo eu lírico, que é a da vida e da morte. Se há luz, existirá a sombra, pois como em seu outro poema desta mesma obra: “Como a folha se vira para a luz / a sombra desenha-se na parede.” (2011, p. 225), demonstra a impossibilidade de separar a luz da sombra, também nesse sentido, é possível dizer que não há vida sem morte. Esses conceitos são indissociáveis e entender isto é entender a necessidade de celebrar o momento da partida. Por exemplo, as imagens da noite, da madrugada, da sombra que desliza apontam para o sentido da sombra, da morte que se aproximou, em contraponto com as imagens dos ovos de vida da serpente, da fonte guardada pelos guardiães, do próprio fogo, que indicam o sentido da luz, e consequentemente da vida. Os ovos são vida, pois novas vidas habitam esses ovos, sendo assim indica iniciação.

É significativa também a questão do cuidado e da proteção, a cobra dorme sobre seus ovos, e os protegem, os guardiães da fonte preparam a madrugada, indicando cuidado, as mães velam o fogo: velar com o significado de permanecer em vigília para proteger algo. Tudo isto abre margem para entender o quanto é importante este ritual de passagem, pois todo ele deve ser feito com muito zelo e cuidado.

Sobre a sonoridade, há forte emprego da consoante bilabial ‘m’, que traz a sensação de graduação, processo, arredondamento, tudo isto acentua a ideia de que este procedimento ritualístico é algo que está se passando em um tempo suspenso, um tempo diferente do tempo cotidiano, é um momento especial.

Nesta obra de Paula Tavares, a autora utiliza em diversos momentos os elementos do ofício de escrever para compor seus poemas, as palavras, os versos, são recorrentes imagens utilizadas por ela para mostrar a subjetividade perante a vida. Neste poema em específico: “Uma antiga fúria oferece / a formula / limpa as palavras / de todas as sílabas mortas.” Estes versos abrem margem para o entendimento da renovação, as sílabas mortas são a metáfora do que é preciso deixar para trás neste ritual, ficam as palavras já limpas, as palavras vivas, a vida então continua, a vida então segue.
E então é posta a questão do silêncio das mães, como prenúncio do luto, que é este nó da voz que fica, mas que é capaz de atravessar a vida assim mesmo e sustentar metade da terra:
O nó da voz atravessou a vida
Sustenta a metade da terra
Onde deslizam as sombras
Por detrás dos vimes
Celebra-se então a hora
Os mortos abandonam os vivos
Entre sombra e luz
Nas veias finas da terra.
(TAVARES, 2011, p. 216)
Quando os mortos abandonam os vivos é preciso que o nó da voz perpasse tudo isto, para que quem se mantém vivo possa seguir em frente. A imagem das veias finas da terra, título da sua obra, demonstra o quão frágil é a vida. Ana Paula Tavares faz o leitor mergulhar na subjetividade feminina, sendo o feminino símbolo dos conhecimentos ilógicos, irracionais, como a noção de vida e morte, detentor desta fragilidade capaz de sustentar toda a terra com suas finas veias. Sobre este aspecto comenta:
“Com as “veias finas da terra” é, assim, uma metáfora da própria escrita poética. É conhecer e ter consciência da finitude da vida e lidar com o “cheiro ácido do pântano/ O silêncio gelado dos nossos mortos/ A presença inquieta dos outros/ O lento movimento das dunas” (TAVARES, 2011, p. 247). Logo, pensar a terra, é reescrever poeticamente Angola, é re-pensar a história angolana, indo “(...) pelos passos das crianças gritar num sul mais/novo” (Idem, p. 218).

OS NOVOS CADERNOS DE FABRO

Os novos cadernos de fabro, uma espécie de diário do fazer poético, são compostos por seis fragmentos. A parte I do poema inicia com um chamado contundente para o novo, “Não demore”, as imagens de luz e sombra agora seguem em uma contraposição entre o novo e o velho, na palavra de brilho que está à espera. Nos caminhos novos encontrados o sujeito lírico feminino se depara com sua história, “antigas fontes de beber sedes e sorrisos”, uma história que tem uma beleza nostálgica e aponta para o novo como uma necessidade material imposta, a “sede”. Os sinais velhos, são os vestígios de uma história apagada pelo colonizador, pela guerra, que insistem em deixar suas marcas no corpo e nas terras. A forte imagem, “Sou o deserto / sem as palavras”, expressa a vastidão violentamente devastada que se percorre nessa procura. Quem é esse sujeito que afirma e sabe, que busca sua ascendência para lançar seu futuro?

No fragmento II o caminho na busca pelo novo intensifica-se “pelos passos das crianças”, a geografia das “veias finas da terra” localiza-se mais precisamente ao sul, que é procurado e ressignificado, o sujeito poético quer seguir esses rastos para o novo. Esse desejo percorre o poema todo, em sua composição abusa de enjambements para entrecortar os versos e deixar espaços sem respostas. O desfecho do breve fragmento aponta uma direção, compondo uma imagem das perspectivas abertas pelo novo, “Talvez entretanto no pátio dos olhos tenha / Nascido a buganvília”, nesse lugar amplo do olhar, que acompanha o corpo e a memória de um povo, está a força de sua história, representada pela metáfora da árvore buganvília “forte na sua estrutura retorcida, de metal, e [que] resiste, podendo mesmo transformar-se em tecido fino aéreo se a isso o tempo a obrigar” (TAVARES Apud MACÊDO, 2011, p.1). No texto “O horizonte feminino, a paisagem da terra e o lirismo da buganvília: imagens (po)éticas em COMO VEIAS FINAS NA TERRA, Leonel Isac Maduro Velloso reflete sobre a imagem da buganvília (2018, p. 128):
Podemos afirmar que a buganvília é marca do lirismo da poeta, que, mesmo escamoteado por um tom elegíaco, deve ser entendido como metáfora poética do próprio sul que resistiu à colonização e à guerra civil. Simboliza a tradição na sua tensa relação com o presente – “sempre a renascer”. Também representa a escrita de Paula, a resistência da mulher, a esperança, a própria Angola. Poeta é quem escreve, mesmo em tempos sombrios. E, mesmo que diga palavras “amargas como os frutos”, segundo Paula, “a poesia é coisa viva e líquida e respira todos os pequenos espaços que encontra, mesmo no mundo doente em que vivemos.” (TAVARES Apud SECCO, 2014, p. 104)
A metáfora da árvore continua na parte III, as flores tentam impedir e consolar “o choro e o canto das raízes”, que em sua estrutura tem registrada a dor marcada naquela terra. Então, outra árvore estrondosa toma a paisagem, o jacarandá, o ritmo dos poemas é intercalado com breves e intensos movimentos, como se os olhos do leitor pudesse acompanhar a evolução e o florescer das árvores, o predomínio da luz atinge seu ápice na paisagem azul. Nos versos finais, “Doença assim é p’ra fazer gritar de / prazer”, as metáforas se contrapõem e se encontram, o florescer do novo, da natureza, da busca pela renovação da vida que brota das raízes, e o grito de prazer de uma relação carnal, doença terrena dos desejos mais submersos irrompendo tabus e traumas para transbordar e escorrer pela terra e pelo pó seus líquidos, seus gozos.

A sequência poética ganha fluidez e leveza, o lirismo das imagens embriagam e conduzem o leitor nesse percurso de uma espécie de flâneur entre a música que sai de uma concha, os sons do sino, a roupa fresca colhida e o mar. O fragmento IV marca um ponto de inflexão, a materialidade das metáforas por alguns momentos se abstrai, flashes de cenas compõem o tom confessional, que se intensifica. A parte V do poema aponta a subjetividade colocada nos objetos terrenos, que são feitos de versos e são o próprio fazer poético:
Aqui as pedras já não são pedras. O
sopro de vida que as
habita é um resto da fala antiga
de que são feitos
os versos. Fios de pólen
e líquenes
recriam
antigas danças de floresta. O mar
deixa o cheiro pelas mãos.
(TAVARES, 2011, p. 221)
Em um texto escrito para a revista Mulemba, Tania Macêdo adverte: “o longo poema, composto de VI partes, “OS NOVOS CADERNOS DE FABRO”, que retoma, do livro Manual dos amantes desesperados, o poema LIVRO DAS VIAGENS (caderno de Fabro), já referido” tem revisitações e espelhos importantes. A relação das pedras com o trabalho artesanal poético, recorrente na poesia de Paula Tavares, do labor braçal nos clãs às pedras colocadas nas filas pelas mulheres da cidade para guardar lugar e conseguir os alimentos racionados para suas famílias. No trecho a seguir do poema LIVRO DAS VIAGENS encontra-se uma dessas referências refletidas, o trabalho das mulheres com pedras antigas inventa o alimento e os dias, é também o que escorre os verbos:
De onde eu venho há pedras antigas
gastas das mãos das mulheres
que inventam a farinha de levedar
os dias
as aves rasam a mesa
quando se abrem os frutos e se debulha o milho
as mãos, as lentíssimas mãos,
acendem o fogo do meio.
Dividem-se as palavras e as cinzas
pode ser de paixão
para que escorram da boca
os verbos
soltos então pelo chão onde as crianças pousam
seus pés de leite e sono
(TAVARES, 2011, p. 196 - 197)
Fluidez e materialidade se fundem, o etéreo que está enterrado na lama, a luz que pulsa na noite escura, é dentro dessa eternidade que todas as pessoas vivem na tentativa de conviver com seus opostos, suas contradições, a dualidade inerente a sua história e subjetividade cindidas pelo processo de redescoberta e fundação de uma identidade pós-revolução. O fôlego do poema se contorce e a lama se impõe entre as imagens de movimentos bruscos, de solavancos e tentativas pelo novo, a terra e suas raízes são poderosas e não podem ser apagadas pelo vento, uma amálgama entre o desejo de futuro e a tradição persiste, “a eternidade navega uma / solidão de lama”.

Sendo assim, é possível dizer que Paula Tavares, nestes poemas analisados, utiliza de dualidades como luz e sombra, tradição e modernidade, o novo e o velho, vida e morte, para refletir as oposições vividas em Angola advindas de seu contexto histórico e social. Sua poesia traz paisagens e elementos da natureza como registro principalmente da subjetividade feminina, que é ricamente explorada na obra, demonstrando a importância das mulheres de Angola. Paula Tavares cumpre o papel de fazer o leitor mergulhar neste universo feminino de maneira fluida e com certa leveza. A forma de seus poemas em fragmentos soltos trazem essa essência corrente de sua poesia. O título, COMO VEIAS FINAS NA TERRA, aparece como um prenúncio da fragilidade presente numa terra permeada dos vestígios e marcas da colonização, mas que resistiu e continuará resistindo, pulsando vida, como a força de suas mulheres.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS   

ANTUNES, Erica. De missangas e catanas: a construção do sujeito feminino em poemas angolanos, cabo-verdianos e moçambicanos. Tese de Doutoramento.  São Paulo: Universidade de São Paulo, 2010.

FANON, Franz. Da Violência. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MACÊDO, Tania. A delicadeza e a força da poesia. Mulemba. Rio de Janeiro, v.1, n. 4, p. 38-43, jul. 2011.

TAVARES, Paula. Como veias finas na terra. Amargos como os frutos: poesia reunida. Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

VELLOSO, Leonel Isac Maduro. O Horizonte feminino, A paisagem da terra e o lirismo da Buganvília: Imagens (Po)Éticas em Como veias finas na terra, de Paula Tavares. Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, Volume 10, Número 19, jul.-dez. 2018.

VISENTINI, Paulo Fagundes. As Revoluções Africanas: Angola, Moçambique e Etiópia. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.










2 comentários:

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  2. O Trabalho Per-severa.:
    https://www.youtube.com/watch?v=EiwkqRMja24

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